sábado, 8 de setembro de 2012

Quando eu desenhava sóis amarelos

Para grande felicidade minha, ainda faço parte das pessoas que trabalham neste país. Não deve haver dia nenhum em que não excomungue com afinco o dia em que escolhi ser professora num país que  não tem lugar para esta classe profissional. Contudo, também não há dia nenhum em que não agradeça aos santinhos todos o facto de ainda ter trabalho, numa nação onde isso é cada vez mais uma recordação de outros tempos melhores.
 
Ora, creio que neste momento esta é uma sensação partilhada por todos os que percebem a situação complicada que atravessamos e que notam bem as enormes e avassaladoras dificuldades pelas quais muitos passam. Ainda assim, e seguindo o provérbio que diz que «Quem não se sente não é filho de boa gente», é difícil não pararmos durante alguns momentos a perguntar-nos «Mas afinal eu trabalho para quem?». Bom, se não trabalharmos, não comemos: é mais do que sabido. Porém, a toda a hora medidas, aumentos de impostos, uma quantidade descomunal de dinheiro que nunca nos chega a passar pelas mãos e que vai directamente não sei bem para onde (já que vemos poucos benefícios daquilo que pagamos) é coisa que mói muito. De tempos a tempos vêm mais medidas e o que vemos nós? A Educação a piorar, a Saúde a piorar, a Segurança Social sem dinheiro para ajudar quem precisa mesmo (e nós a vermos a nossa contribuição a aumentar, mas sem percebermos muito bem porquê e por que razão não optaram por outro caminho), a Justiça a fugir com os tribunais sabe Deus para onde... E nós a abrirmos os bolsos, as carteiras, todo e qualquer buraquinho onde existam cêntimos para "ajudar" a nação a endireitar-se. Muito bonito. Especialmente para mim, que tenho vinte e seis anos, que não considero que tenha contribuído para o buraco em que estamos enterrados, que não vivi acima das possibilidades, que andava, provavelmente, a aprender a desenhar casinhas com chaminés a deitar fumo quando uns e outros andariam a gastar os tão famosos dinheiros que vinham de fora. Eu não tenho culpa nenhuma disto que agora está a acontecer, não tenho culpa nenhuma desta crise resultante de erros de governação em cima de erros de governação porque estava capaz de apostar que, enquanto por aqui se desistia da pesca, da agricultura, de tudo, eu andaria alegremente a desenhar sóis amarelos e pássaros pretos em folhas de papel que a professora fazia render até à exaustão, em admiráveis manobras de poupança muito consciente. Pois, eu tenho vinte e seis anos e não tenho culpa. Mas sou uma trabalhadora precária, assim como muitos da minha geração. Pior: boa parte dos jovens da minha geração nem sequer encontram trabalho, não vêem um tostão no final do mês. E pior ainda: pertencem, talvez, à geração mais qualificada que este país já viu. Ainda assim ninguém os quer, ninguém arranja lugar para eles e, maravilha das maravilhas, de vez em quando são pouco delicadamente convidados a emigrar. Não fui eu que esbanjei dinheiro, não fomos nós que demos cabo da indústria e do comércio, não fomos nós que rebentámos com a economia. Mas somos nós que passamos os dias a ver ofertas de empregos em que não nos querem porque temos estudos a mais, somos nós que todos os meses passamos o recibo que nos leva quase um quarto do pouco que recebemos, somos nós que de tempos a tempos somos convidados a agarrar na tralha e a ir pregar para outra freguesia porque «o contrato acabou», somos nós que andamos de curso em curso, de pós-graduação em pós-graduação, de mestrado em mestrado e de doutoramento em doutoramento numa vã tentativa de adiar a entrada num mercado de trabalho que há já muito tempo nos fechou as portas. Eu só tenho vinte e seis anos, não tenho filhos, não saí da casa dos meus pais e ajudo a pagar esta palhaçada toda de «com esta austeridade a coisa vai ao sítio ou então talvez não e para o mês que vêm anuncio-vos mais medidas». Eu não vejo jeitos de ter uma vida independente, longe dos que me pagaram cursos superiores para que um dia me saísse bem. E sabem o que é que ainda me dana mais? É que eu nem sou das pessoas que se encontram em pior situação. Há por aí muita gente, da minha geração e de outras, a viver um martírio diário e sem lhe espreitar o fim. Eu só tenho vinte e seis anos e palavra de honra que não percebo como é que se chegou a este ponto. O que sei, com toda a certeza que vinte e seis anos podem dar, é que tenho cada vez mais saudades dos dias em que desenhava sóis amarelos e pássaros pretos.

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