segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O Inferno

No livro A Biblioteca (que acabei ontem), de Zoran Zivkovic, há um conto que exprime uma ideia hilariante. Chama-se «Biblioteca Infernal» e nele um tipo morre e vai para o Inferno. Lá encontra uma realidade muito diferente daquela que usualmente atribuímos ao reino de Hades. Ao falar com um secretário que consulta ficheiros num computador, percebe que a sua pena será também diferente do esperado e que terá que ver com um dos crimes que cometeu em vida: não leu o suficiente (nem perto disso). Deixo-vos um excerto.
 
« - Sobretudo para investigações baseadas em estatísticas. Quando introduzimos os dados de todas as pessoas que encontramos aqui, ficou demonstrado que a característica que de longe une o maior número dos nossos internos, mesmo 84,12 por cento deles, é a ausência de vocação para a leitura. Em 26,38 por cento esse facto até se podia compreender. São completamente analfabetos. Mas o que se podia dizer em relação aos outros 47,71 por cento que, embora soubessem ler e escrever, durante a sua vida inteira não pegaram em nenhum livro como se os livros fossem pestilentos? Os restantes cerca de dez por cento ainda leram alguma coisa de quando em vez, mas era melhor que não o tivessem feito porque o que leram não tinha valor nenhum.
 
Fiz um sinal de admiração com a cabeça.
 
- Quem diria?
 
Olhou-me de soslaio.
 
- Por que lhe parece tão estranho? Comece por si próprio. Quantos livros leu?
 
Reflecti um pouco, esforçando-me por lembrar.
 
- Bem, quer dizer, não assim tantos, para dizer a verdade.
 
- Não assim tantos? Dir-lhe-ei exactamente quantos.
 
De novo ouviu-se o som de um dedilhar rápido no teclado.
 
- Nos últimos vinte e oito anos de vida começou a ler dois livros. No primeiro, chegou a meio da quarta página, e no segundo, não avançou para além do parágrafo introdutório.
 
- Não me interessava. - respondi baixinho, cheio de arrependimento.
 
- Não me diga? E havia outras coisas que o interessassem mais?
 
- Nem sequer desconfiava de que a falta de leitura era um pecado capital.
 
- E não o é. Embora, se fosse, o mundo seria muito melhor. Ainda não aconteceu que alguém acabasse no Inferno por falta de leitura. Por isso o assunto nos tinha escapado até à introdução de computadores. Mas quando, graças a eles, nos apercebemos dessa ligação, surgiu a oportunidade de a utilizarmos. Poderíamos até dizer que daí resultou uma verdadeira reforma do Inferno.
 
(...)
 
- Desculpe, mas não estou a perceber.
 
- As coisas foram fáceis. Introduzimos a leitura como obrigação geral. Assim juntámos o útil ao agradável. Antes de mais demos aos nossos internos a possibilidade de remediarem o defeito principal que os trouxe até aqui. Se tivessem lido mais, tinham tido menos tempo e incentivo para crimes. A leitura é para eles um verdadeiro bem medicinal. Por isso consideramo-lo como terapia, e não como castigo, embora talvez seja aplicada com um certo atraso. Mas, na verdade, nunca é tarde para isso. E como se chama o lugar onde todos desfrutam de leitura?
 
- Uma biblioteca?
 
O homem abriu os braços.
 
- Claro.»
 
in A Biblioteca, de Zoran Zivkovic (pp. 62 - 65)
 


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