domingo, 27 de julho de 2014

Em fúria

Lembrei-me agora, a propósito de uma notícia do Expresso, de procurar na internet a prova que os professores contratados com menos de cinco anos de serviço e que pretendam candidatar-se ao ensino público realizaram na semana que passou. Não fiz essa prova e tenciono nunca a fazer. Depois de vê-la afirmo que prefiro mudar de profissão a sujeitar-me a tamanha humilhação. Convido-vos a pesquisarem a PACC para verem o nojo a que foram sujeitos professores das várias disciplinas. Havia perguntas que pareciam retiradas de um exame nacional do nono ano! 

Sou professora de Português há quatro anos e, para sê-lo, estudei em dois ciclos de ensino superior, frequentando o mesmo durante mais de sete anos. Há quatro anos lectivos que lecciono níveis que vão do quinto ao décimo segundo ano. Já levei mais de uma centena de alunos a provas nacionais. Nunca precisei, para isso, de responder a perguntas sobre o tempo que o Sr. António leva a deslocar-se do ponto A ao ponto B (consultem a prova), nem de estudar a distribuição de lugares dentro de uma carruagem de um comboio, nem de verificar quantas pessoas poderão reclinar o banco do meio de transporte em que viajam. Nunca precisei, para levar os meus alunos a bom porto, de resolver problemas matemáticos. A única matemática que enfrento é mesmo a que envolve as percentagens dos testes e das notas finais. Mas daí a precisar de saber quantas estações de metropolitano tenho de percorrer para chegar do Picadeiro ao Quartel (consultem a prova) vai um passo enorme. Até posso saber responder a tudo, mas é humilhante que se sujeite a perguntas destas gente que se formou numa área específica. Não preciso disto no meu dia-a-dia e não saber responder de caras a algumas destas palhaçadas não faz de mim pior professora.

É nojento. É tão revoltante que ninguém imagina! O melhor era fazer-se logo um auto-de-fé no Terreiro do Paço e queimar por lá os ousados que têm menos de cinco anos de serviço e que ainda assim, sem prova que certifique que TÊM CÉREBRO, gostam de dar aulas. Aliás, o desfile de professores nestas condições até podia fazer-se com os mesmos usando umas lindas orelhas de burro, enquanto eram deliciosamente chibatados por todos os que aplaudem esta prova e, pior, o achincalhamento e a constante desacreditação destes profissionais. Não sabe contar estações do metropolitano? É queimá-lo! Não sabe responder a quebra-cabeças (consultem a prova)? É dar-lhe ainda mais açoites! Não sabe agrupar provérbios populares de acordo com a sua temática? Então não pode leccionar seja que disciplina for porque é nitidamente burro, incapaz e, provavelmente, inapto para contactar com crianças e jovens, pois pode pegar-lhes a asnice. 

Mas eu li Pessoa, li Camões, sei dividir orações, consigo fazer inferências a partir do que leio, sei relacionar aspectos da minha língua com o Latim, que lhe deu origem. Eu li Camilo Castelo Branco, sei quais foram as correntes literárias portuguesas, consigo distinguir um texto expositivo de um texto expositivo-argumentativo, eu até consigo perceber porque razão o Pajem fica no cais, enquanto o Fidalgo embarca na barca do Inferno! Eu sei contar sílabas métricas, sei ensinar e reconhecer metáforas, sei que Os Lusíadas é uma narrativa em verso, sei conjugar os verbos em todos os tempos e modos, nos seus tempos simples e compostos, nas suas várias pessoas, no singular e no plural. Sei identificar classes e subclasses de palavras, sei quando utilizar "à", "há" ou "ah", sei distinguir "de mais" de "demais", sei o que é uma analepse e uma prolepse, ensino sem sofrimento o que é uma perífrase a um nível tão tenro quanto o sexto ano, sei o que é um complemento oblíquo e como se distingue de outros complementos e modificadores, sei de trás para a frente a lista dos verbos copulativos. Eu sei isto tudo e muitas coisas mais e, além disto, leio muito, leio todos os dias, procuro saber ainda mais. Nunca me perdi nas linhas do metropolitano, mas também se me tivesse perdido, deixaria de poder desejar ser professora? Passou agora a leitura de um mapa a ser mais importante do que todo o conhecimento que adquiri no Ensino Superior (público, no meu caso, e note-se a ironia da coisa...) e do que a relação saudável de afecto que desenvolvi ao longo destes anos com os meninos e as meninas que já se sentaram diante de mim para... aprenderem? Será que o facto de eu não saber quem esteve num grupo de Bridge ou de outras diversões faz de mim uma pessoa a excluir do ensino? Então e o resto? Aquilo que sei na perfeição? Bem sei que existirá uma prova para cada disciplina específica, mas esta já é suficiente para ter a certeza de que não sou mesmo nada bem-vinda nesta profissão. Estudei muito, tive uma média muito boa tanto na licenciatura quanto no mestrado realizados na Universidade de Lisboa. Defendi uma tese com uma classificação bem próxima da nota máxima. Por acaso, sempre ensinei no privado: foi por lá que se me abriram as portas. Fiquei hoje a saber, pela consulta da prova, que os professores são uns atrasadinhos e que é assim que são tratados. Recuso-me a isto.

Não farei esta prova. Não a fiz e não a farei. Considero-me boa naquilo que faço, mas consciente de algo que há muito me faz pensar: o melhor para mim é mudar de profissão. Haverei de o fazer, logo que seja possível. Não estudei tanto para esta humilhação. Não mereço isto. Corrijo: não merecemos.

1 comentário:

  1. Eu não vi esta prova, mas vi a anterior, e era do mesmo estilo. Não percebo qual é o objectivo daquilo porque qualquer pessoa com dois dedos de testa (quanto mais quem terminou um curso superior) resolve 80% daquelas perguntas. Era demasiado caricato para ser verdade.
    Eu não sei quais são os verbos copulativos nem o que é o complemento oblíquo (se calhar devia saber, já tinham esses nomes quando nós andávamos na escola?), mas acertei em todas as perguntas... Se calhar o ministro acha que eu podia dar aulas de Português.

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