quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Espreitadelas furtivas

Oito e meia da manhã. Estou no autocarro a pensar se tenho ânimo para tirar o meu livro da mala e ler umas páginas antes das aulas quando percebo que estou num lugar privilegiado para observar à socapa a revista da senhora que está à minha frente. E assim fui até ao meu destino a deitar um olhinho à boa da revista cor-de-rosa, estupidificando um cérebro que, acordado desde as sete da manhã, não é muito melhor do que um saco de ervilhas congeladas.
 
Porém, o que aqui interessa não é a minha falta de actividade cerebral no período matinal. O que aqui importa é isto: toda a gaja que aparece nas revistas de tom rosado ou «apresenta um corpo invejável» ou «apresenta um corpo invejável e quer ser mãe». Toda. Minha gente, em seis ou sete páginas que a senhora virou, observei quatro figuras públicas portuguesas e uma norte-americana em alegada excelente forma física, sendo que, dessas, algumas diziam que queriam ser mães. E quando não diziam, a própria revista referia o facto de que já eram mães precisamente para destacar ainda mais a sua invejável forma física. Não estivesse eu tão aparvalhada com sono e teria ficado enjoada logo ali. É que já é estúpido que a todo o instante e que para toda a gente se saque da frase feita sobre o corpo de fazer inveja. Porém, a treta do «quero ser mãe» ou «ser mãe mudou-me» ainda me enjoa mais. É uma moda que está pegada há alguns anos e que toca o ridículo dos ridículos. A gaja pode ser a mais porca que o mundo já viu, mas depois de ser mãe adquire o estatuto de respeitável matrona que lhe confere o direito a umas quantas páginas cheias de legendas onde são ditas coisas como «mãe há dois meses, Maria Dulvina mostra a sua invejável forma física» ou de citações do género «desde que fui mãe tornei-me uma pessoa melhor». Ou ainda, para ser mais bonito, um título em letra de tamanho trinta e seis a dizer «já penso em ser mãe». Que lindo!
 
Toda a gente, mais tarde ou mais cedo, quererá largar a sua prole pelo mundo (ainda que os impostos sejam tão demovedores que se tornaram melhor contraceptivo do que a pílula e o preservativo juntos), mas daí a esfregar-se isso na cara dos outros dia sim, dia também é demasiado, não? Para as revistas, isto é um filão porque, por alguma razão que desconheço, as pessoas gostam das barrigas das grávidas famosas, gostam de as ver gordas nos últimos meses de gravidez e gostam de poder dizer «viste a Maria Dulvina? Ficou gorda que nem um perú desde que teve o puto». Assim como depois gostam de as voltar a ver magrinhas e de olhar com um enorme brilho de inveja a mudança física das ditas madames. E portanto, de forma estranha, isto da maternidade deixa algumas pessoas loucas. Como duas «mães» são sempre melhores do que uma, vai de encher as revistas de mães babadas, mães que hoje estão mais completas, mães que se sentem melhores pessoas, mães que agora sabem o que é o amor, mãe que só vivem para os príncipes e as princesas, mães que lambem as crias de manhã à noite, mães que não eram nada antes de serem mães, mães que têm conselhos para dar, mães que ainda não são mas já pensam em ser, mães, mães, mães...
 
Minha gente, acredito que ter um filho (e reparem que não digo «ser mãe» porque a expressão já me causa urticária, de tanto que a ouço) seja uma grande mudança e que apresente situações muito diferentes de todas as que se vivem até que um filho surja. Acredito também, que a maneira de ver o mundo mude, assim como a organização do tempo e o modo como se encara o futuro. Acredito que se perca muito do egoísmo próprio da juventude, ou por outras palavras, da fase pré-rebentos. Ainda assim: as mulheres têm filhos desde que o mundo é mundo e só agora se faz alarido por isso. Só agora correm rios de tinta sobre esse facto. Aliás, às tantas a imprensa e a sociedade quase fazem com que uma mulher sem filhos se sinta amputada ou, melhor, a única desgraçada que não possui a última peça da moda. Mas isso não é assim. Não querer ter filhos ou adiar a sua vinda não é mostra nem de egoísmo nem de nada anti-natura, como alguns possam pensar. É tão somente uma decisão pessoal que, felizmente, o avanço dos séculos e das mentalidades nos permite tomar. Embora muitos pensem que sim, nem «toda a mulher é uma Virgem Maria à espera do seu Menino Jesus», como ouvi uma rapariga que não queria ter filhos dizer há algum tempo sobre o papel que a sociedade entrega às mulheres.
 
Enfim, esta tara da maternidade nas revistas parece ter vindo para ficar. Para mim que não leio essas publicações e que já mudo de canal quando ouço uma tipa começar com a história de «ser mãe é...», a coisa não incomoda tanto. Incomoda-me, sim, quando o discurso é proferido por aí, nas paragens dos autocarros, em conversas entre amigas, entre vizinhas, na vida normal e entre gente nada famosa. Incomoda-me quando me enchem os ouvidos com uma conversa que, invariavelmente, termina com «enquanto não fores mãe, não vais saber». Bem, minha gente, a essas pessoas posso dizer muita coisa (ainda que quase todas elas sejam palavrões). Mas por exemplo, posso dizer que nem todos são professores, mas isso não faz com que não tenham muitas postas de pescada para lançar sobre a profissão e sobre as capacidades dos docentes. Posso dizer que poucos são médicos, mas que toda a gente tem a mania de atirar curas e mezinhas para o ar. Eu hei-de chegar a ter filhos quando quiser e tiver de ser. Entretanto, por favor: não me moam a cabeça com isso do «não és mãe, por isso não sabes», como se eu fosse um útero ignorante com pernas. Quanto às revistas e às famosas mães de «invejável forma física» só posso dizer o seguinte: só mesmo com os neurónios dormentes às oito da manhã é que troco os contos do Joaquim Paço D'Arcos que transporto na mala pelas espreitadelas furtivas às revistas alheias.
 
 

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