sábado, 8 de dezembro de 2018

Canção Doce - o balanço


Canção Doce é um daqueles livros que nos faz pensar. Não fechamos o livro como se nada se tivesse passado durante a sua leitura. Pelo contrário: todo o livro é uma revelação sobre um modelo de sociedade que, infelizmente, conhecemos bem e no qual nos servimos dos outros sem querermos realmente saber o que eles querem, pensam ou vivem depois de saírem de junto de nós.

A acção decorre em Paris, num apartamento pequeno de uma família de classe média. Paul e Myriam têm dois filhos e, inicialmente, a mãe opta por ficar em casa com os pequenos, abdicando da sua carreira no Direito. Porém, à medida que o tempo passa, começa a sentir-se sufocada entre as paredes da pequena casa e vem ao cimo a inveja pela vida profissional do marido. Aos poucos vai-se desenhando na sua cabeça o desejo de regressar ao trabalho, mas deixar os filhos entregues ao cuidado de uma estranha gera nela uma ambiguidade de sentimentos difícil de suportar. Inevitavelmente, acabará por surgir a oportunidade profissional e a consequente necessidade de arranjar uma ama para os filhos. Inicia-se a busca e eis que surge Louise, aquela que é vista como a Mary Poppins dos tempos modernos de tão perfeita que é. 

O livro começa a sua história pelo fim. É-nos contado nas primeiras páginas o final da relação entre a ama e esta família francesa. O resto da história é uma analepse, ou seja, é o voltar atrás para se perceber que caminho foi percorrido até àquele momento fatídico em que Louise mata as crianças de quem cuida. Não estou a desvendar nada que estrague a leitura: é mesmo assim que o livro começa e, acreditem, essas primeiras páginas são sufocantes. São páginas dolorosas, de uma dor inimaginável. Contudo, o resto do livro é uma revelação. É um retrato cru de como tendemos a ser ilhas, de como estamos sozinhos mesmo no meio de uma multidão.

Paul e Myriam querem uma ama e têm-na. E rapidamente ela será mais do que uma ama. Será praticamente uma empregada de limpeza, uma cozinheira, uma costureira, uma palhaça... Enfim, será tudo aquilo que lhes fizer falta. E eles aceitam e agradecem que ela faça sempre mais e mais e mais. Aceitam e agradecem a sua presença constante porque isso lhes liberta o tempo. Aceitam que ela lhes mude a casa, que lhes mude os hábitos, que tome decisões que eles até nem tomariam. Tudo porque isso lhes facilita os dias e porque lhes dá a sensação de que a vida é perfeita, de que não têm de se preocupar com nada que não seja importante e que se prenda com as suas vidas profissionais, essas sim dignas de atenção.

O problema é que todos gostamos de ter a papinha feita até ao dia em que alguma coisa, por pequena que seja, começa a irritar-nos. Aí, a Fada Madrinha começa a transformar-se numa Bruxa aos olhos de quem nela principia a encontrar defeitos. E, de repente, aquela que era indispensável passa a ser facilmente descartável. Aquela que tantos elogios recebeu torna-se digna de críticas gratuitas.

Sem desvendar mais sobre o enredo, deixo-vos apenas aquilo que pude perceber com esta narrativa. Percebi que estamos muito sozinhos. Que por muito que façamos falta nesta empresa ou para aqueles colegas, poucos são os que realmente querem conhecer-nos e tentar perceber quem somos, que carga carregamos aos ombros, que dores temos em nós. Há neste livro um momento que considerei duríssimo, carregado de uma crueldade desmedida. Quando Myriam informa uma amiga de que procura uma ama, esta aconselha-a a que opte por uma estrangeira que tenha os seus próprios filhos longe, no país de origem. Isto para que possa estar sempre disponível para os filhos da patroa, seja a que horas ou a que dia da semana for. Queixa-se ela de que a ama que fica com as suas crianças é um problema porque nunca pode ficar durante a noite, nem ser avisada de uma necessidade de um momento para o outro. Como se a ama não tivesse vida, família, ou como se não precisasse nem devesse ter tempo para si. Vi neste pequeno diálogo uma crueldade e um egoísmo imensos que, infelizmente, não estão assim tão longe daquilo que conhecemos nesta sociedade louca em que vivemos. É como se as pessoas fossem objectos que se usam sempre que se quer e que se deitam fora quando já não servem. É uma inversão dos valores e de tudo aquilo que deveríamos ser. E é chocantemente verdadeiro. Paul e Myriam vêem em Louise apenas o que querem ver: alguém que lhes facilita a vida. Nem mesmo quando sabem que a ama atravessa momentos difíceis procuram ajudá-la (pelo contrário: ainda conseguem censurá-la). Não entendem que assim só fazem com que a sua família ganhe uma dimensão doentia para aquela ama que, aos poucos, vê serem cortados todos os fios que ainda a ligam ao mundo.

Com este livro, Leila Slimani venceu o Prémio Goncourt de 2016 e, em meu entender, foi muito merecido. A escrita é muito directa, sem grandes rodeios ou floreados, e assim vai bem ao encontro da mensagem que pretende passar: uma mensagem também ela crua e violenta, chocante por ser tão verdadeira. É um livro que «não mata, mas mói» e que, precisamente por isso, vale muito a pena ler.

4 comentários:

  1. Curiosamente, terminei ontem contos de um escritor marroquino, também ele vencedor do Goncourt. "Amores Feiticeiros", de Tahar Ben Jelloun. Partes boas, mas que na sua maioria não me encheram as medidas como gostaria. E nem posso culpar a tradução porque li no original. Esperava mais.

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  2. notinha de rodapé ;)
    -está a decorrer uma feira do livro na alameda da cidade universitária
    https://www.ulisboa.pt/evento/livros-na-alameda-feira-do-livro-2
    encontrei lá alguns livros a 1€-3€-5€ (Michel Leiris, Malcolm Lowry (de quem recomendo o fantástico "Debaixo do Vulcão"), André Breton, Tanizaki (estou neste momento a ler o "A Chave", o meu 1º Tanizaki), entre outros
    Boas Leituras

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    1. Como já escrevi no teu espaço: tentações!:)
      Tentarei passar por lá.
      Gosto muito de todos os escritores que mencionas. O meu primeiro Tanizaki foi, salvo erro, "Diário de um Velho Louco".
      Mesmo para quem não aprecia literatura asiática, neste caso japonesa, eu gosto muito, o "Elogio da Sombra" é muito elucidativo e muito bonito. Um pequeno ensaio sobre as diferenças entre o Ocidente e o Oriente. A beleza das sombras e da luz. Além do mais, há um gato esparramado em cima de um estrado de madeira com árvores em fundo na capa(na minha edição) :) "A Chave" está debaixo de olho e na lista há tempos.
      Bom Leituras :)

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  3. Ando a namorar o "Elogio da Sombra" há algum tempo (haja tempo!!! :D )
    Este "A Chave" (1€ na feira), apesar de não me parecer ser extraordinário, é interessante (o Tanizaki parece-me directo, por oposição, por exemplo, à contenção, à beleza de um Kawabata, do que li pelo menos) . Escrito sob a forma de diário(s) acompanhamos a visão de um casal de meia-idade sobre a sua relação, a sua intimidade. Os diários para além do exercício de reflexão individual, servem para alimentar as fantasias de cada um.


    As Minhas Quixotadas (assim que voltares ao mundo tecnológico a 100% :) ) como está a ser a leitura do Mujica Lainez?
    Boas Leituras

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