domingo, 13 de agosto de 2017

A Vida Secreta dos Livros - o balanço


De vez em quando, pelo meio de tantos livros bons com que nos cruzamos, lá aparece um que é completamente «meh». E este é assim, muito «meh». Meeeesmo «meh». E só não digo que é «meh meh» para não soar a «ovelhês».

É um livro sobre livros, é um facto. Conta algumas histórias sobre autores e sobre obras conhecidas, como a recusa de várias editoras ao primeiro livro da saga Harry Potter ou a morte e ressurreição de Sherlock Holmes por pedido dos leitores. O problema é que tirando uma ou outra, são todas mais do que conhecidas. A sensação com que fiquei foi que, sem pesquisa, até eu podia escrever este livro e atrevo-me a dizer que ele sairia melhor. E não sou eu que estou a ser convencida: é o tom que o autor usa que é francamente mau. Vejamos: todos os leitores gostam de saber cusquices em torno das obras conhecidas que já leram ou que ainda querem ler, mas nenhum leitor gostará lá muito que esses episódios sejam contados recriando conversas que ninguém estava lá para ver, estados de espírito que são fruto da imaginação do autor e não factuais. Eu quero que me contem o que sabem da história e não que tentem recriar personagens e ambientes porque isso dá ao texto um carácter ficcional que lhe tira a verosimilhança que, neste caso, faz falta por serem precisamente acontecimentos reais. Se tudo aquilo fosse imaginação, se a recusa do primeiro romance de Jane Austen fosse ficção e parte da acção de um livro, claro que as conversas teriam de ser recriadas, claro que os buracos teriam de ser preenchidos. Se se tratasse de um romance histórico, esse tom teria de existir. Todavia, este livro apresenta-se como pretendendo contar histórias peculiares sobre livros, autores e personagens que se tornaram conhecidos. Não como uma série de ficções em torno desses três aspectos. Até admito que os diálogos pudessem existir se fossem feitos a partir de cartas ou de diários conhecidos, mas não assim. Porém, para perceberem melhor o que quero dizer, deixo-vos um exemplo retirado da história relacionada com o Lazarilho de Tormes:

     «D. Diego voltou a ler aquela missiva do rei. Não havia dúvidas. Não importava o ter acabado de regressar do seu posto de embaixador de Roma: o imperador instava-o a aceitar um novo cargo, e com urgência. D. Diego pousou a carta em cima da secretária e ficou a meditar em silêncio. Por fim, tomou uma decisão. Abriu uma gaveta, tirou de lá um monte de folhas escritas, envolveu-as com cuidado numa pele de couro para as proteger da chuva... e dos olhares indiscretos.
      Levantou-se e chamou um dos criados da casa.
      - A minha capa - pediu. Quando lha trouxeram, D. Diego Hurtado de Mendonza embuçou-se nela e saiu para a rua.
      Estava frio e uma chuva fina caía insistentemente, embora o pior fosse o vento. D. Diego ia armado e era um homem decidido, pelo que não se preocupava com o facto de a noite ter já tomado conta da cidade. [...]» (sublinhados meus nos excertos em que me parece que a imaginação do autor dá completamente cabo do texto)

Isto é o início do texto dedicado ao que se presume ser a história do surgimento de Lazarilho de Tormes, famosa novela pícara espanhola de autor anónimo (editada por cá pela Sistema Solar, podem ver a edição aqui). Se o autor se limitasse a contar-me o que se sabe sobre a obra e aquilo que as investigações têm revelado, ainda entendia. Até podia ter um tom divertido que não me importava. Agora, imaginar dias de chuva e secretárias e gavetas e atitudes que são pura imaginação distrai do que importa e até lhe retira interesse.

Há livros sobre livros e sobre leitura que são muito, muito bons. Este parece ter sido escrito para quem não sabe nada de nada ou então para ser lido em duas horas de almoço para empurrar um hamburguer ou outra fast food qualquer. Porque, para mim, este A Vida Secreta dos Livros é fast food e nem sequer é da que sabe bem. Não recomendo nem um pouco, mas se quiserem ver como é um livro «meh», espreitem-no.

4 comentários:

  1. Este seria, portanto, o tipo de livro com tudo para dar errado para mim... eu percebo romances históricos como o E Tudo o Vento Levou, ou o Guerra e Paz, que pegam nas guerras reais e inventam personagens para os romances. Acho isso muito giro e muito legítimo! Agora aqueles da Philippa Gregory (ou "A Rapariga do Brinco de Pérola") já me fazem comichão... porque pegam em pessoas reais, e possivelmente porque a minha mãe, não sei muito bem como nem com que nível de racionalidade, assume que é tudo 100% real e foi assim e foi... ela acreditaria nas condições atmosféricas e na secretária.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Esse é um grande problema dos livros e de alguns leitores: a falta de espírito crítico para perceberem que aquilo é produto da imaginação de um autor e que nada, mas mesmo nada, nos garante que as coisas tenham sucedido assim.

      Nos romances históricos «de massas» (a expressão é horrível, mas traduz o que quero dizer), esse é o tom comummente usado. As pessoas querem ser envolvidas numa história e se apenas quisessem os factos comprariam livros de História e não romances. Quando um livro se propõe a contar a História, é isso o que deve fazer e ponto final. No caso deste livro, aquele divagar do autor enjoa e ofusca o resto que até podia interessar (não fosse o facto de ele praticamente só contar histórias que já são muito conhecidas).

      Eliminar
    2. Sim, "de massas", apesar de horrível, é a expressão correcta. É aquele livro empolgante que apela a uma vasta maioria por ser relativamente simples ou passível de entusiasmar, com o factor acrescido de a pessoa sentir que está a ler algo histórico. Daí pegarem sempre em personagens romanceadas, ou romanceá-las no livro (como é o caso do Vermeer no livro do brinco). Escrevi mais ou menos sobre isso aqui: https://barbarareviewsbooks.blogspot.pt/2016/08/frankly-my-dear-i-dont-give-damn.html

      E sim, percebo. Nesse tipo de livro, que seria supostamente não-ficção, e derivado de algum tipo de pesquisa, torna-se ainda mais complicado. Assim, não é adequado e nem faz sentido... desse excerto, nunca retiraria que não se trata de ficção.

      Eliminar
  2. Este livro faz lembrar aquele jornalismo que é mais opinião subjectivo e que é, basicamente, aquilo que vez em maior quantidade nos jornais impressos por este país fora. Acho que um livros sobre cusquisses literárias teria sempre algum interesse por parte de leitores curiosos, mas não desta maneira, definitivamente. Ninguém pediu um documentário ao estilo BBC Vida Selvagem, mas um pouco de profissionalismo e menos sensacionalismo vinham bem a calhar.
    ****

    ResponderEliminar