domingo, 3 de julho de 2016

Elie Wiesel

Não costumo fazer do "As Minhas Quixotadas" um obituário, moda que me parece agora até um bocadinho tonta com as redes sociais e os blogues: morre alguém e, diga-nos muito ou pouco, faz-se logo um texto, maior ou menor, em que se exaltam as qualidades do falecido e que termina muitas vezes com o típico e impessoal “RIP”. 

Apesar disso, hoje tenho mesmo de falar de uma morte que aconteceu ontem e de que só fiquei a saber agora: a de Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto, autor de uma enorme obra literária e Prémio Nobel da Paz. Faleceu aos oitenta e sete anos, o que não deixa de ser admirável tendo em consideração a vida que teve e a sentença de morte que sobre ele pendeu na forma de campos de concentração e outras atrocidades. Dedicou boa parte destas quase nove décadas de vida a relatar ao mundo os horrores vividos durante o Holocausto. Deixa uma obra imensa, tanto na ficção quando na não-ficção. Para mim, e é por isso que falo dele hoje, deixa uma importantíssima, valiosíssima memória de alguma coisa que mancha a nossa História, que nos envergonha enquanto humanos. Elie Wiesel e outros que, como ele, sobreviveram para contar ao mundo e aos que vieram depois aquilo que aconteceu são vozes que devem ser ouvidas (e que podem continuar a sê-lo, pois no caso deste autor, ficam os livros como testemunhos). Nos dias de hoje, são vozes que devem falar bastante alto, fazer-se ouvir seja como for para que não voltemos a repetir aquilo que nunca devíamos ter feito em primeiro lugar. Numa altura em que assistimos a acontecimentos históricos de alcance ainda um pouco desconhecido, num momento da nossa existência em que muitos voltam a olhar para “o outro” como sendo o inimigo, a persona non grata, o alvo a abater, num tempo em que parece voltar a imperar o ódio e o gosto pelo terror, a voz de Elie Wiesel devia sobrepor-se a todo o ruído. Ainda que não mudasse todas as cabeças, talvez fizesse algumas, que andam meio esquecidas, voltarem a funcionar. Talvez levasse uns quantos a fazerem o exercício de se porem no lugar do outro, coisa que me parece cada vez mais difícil de fazer neste mundo egoísta em que por agora vivemos.

Há uns tempos, devem recordar-se, fez-se uma campanha de sensibilização que convidava as pessoas a pensarem no que poriam numa mochila se fossem refugiados, se tivessem de deixar tudo o que é seu para trás e apenas pudessem fugir com o essencial. Até consegui perceber a ideia, mas pelo que pude ver, rapidamente foi tornada num circo de idiotice e de brincadeira. Em muitos casos, a tentativa de “calçar os sapatos” do outro perdeu-se e só ficou mais uma anedota para as redes sociais e para todos os que são absolutamente incapazes de compreender a dor alheia (ou de, pelo menos, tentar compreendê-la). Ao ver tudo isto acontecer, não consigo evitar pensar que caminhamos rapidamente para uma desumanização e que estamos a esquecer-nos muito depressa daquilo que outrora jurávamos que não podia ser esquecido. Nós, que já tivemos a oportunidade de passar por muitos anos de escolaridade, ouvíamos na escola falar sobre as Guerras Mundiais, sobre os campos de concentração, sobre o Holocausto, sobre os regimes totalitários e, sendo paradoxalmente matéria que nos atraía, tirávamos boas notas e perguntávamo-nos como poderia ter sido possível que tal acontecesse. Mais: dizíamos que nunca deveríamos esquecer aqueles horrores para que servissem de exemplo do que não podia repetir-se. Quantos de nós ainda se recordam disso?

Para ajudar a que a memória perdurasse, Elie Wiesel e outros que sentiram as atrocidades na pele, que não tiveram direito àquilo a que comummente e na falta de melhor termo costumamos chamar de “vida normal”, espalhavam a sua palavra e deixavam-nos boquiabertos com o tamanho da maldade, com a capacidade de destruir tudo o que não devia ser destruído. Elie Wiesel, cuja voz não mais ouviremos, deixou um testemunho enorme, disponível a todos os que o queiram conhecer. Por isso, não é por perdermos fisicamente esta pessoa que as memórias que nos deixou se perdem: como sempre ficam os livros que, mais que mero entretenimento, são retratos crus de uma época horrenda da História. E, sobretudo, são aviso sobre aquilo que, como já disse, não podemos permitir que volte a acontecer. 

Por tudo o que acima ficou dito, hoje também este blogue lamenta uma morte. A morte de alguém que já a havia visto de perto quando tudo era possível, mesmo aquilo que tinha de ser sempre impossível. Como com qualquer escritor, fica a obra. Neste caso, isso é ainda mais importante, pois significa que o testemunho, a memória estão connosco e continuarão a modificar todos aqueles que os queiram ouvir com atenção.


Nota: A foto saiu daqui.

2 comentários:

  1. Tenho pelo menos dois livros dele na minha lista... mas vi entrevistas e oh meu Deus. Adorei o que escreveste!
    Beijinhos,
    O meu reino da noite ~ facebook ~ bloglovin'

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  2. A prova de que nos esquecemos, contrariamente ao que prometemos, das vozes iradas e do caminho para a desumanização, é que a morte de uma voz que nunca se deverá calar, ainda que através da sua obra, foi esquecida. Não vi qualquer notícia da morte de Elie Wiesel em qualquer canal de comunicação ou rede social. Esquecer é mais humano do que lembrar.
    ****

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