sábado, 7 de maio de 2016

Silêncio e pena

Um "adolescente" de dezanove anos fotografou-se a ele próprio enquanto pendurava um cachorrinho do lado de fora da janela. Um jovem de vinte e quatro anos escavacou uma estátua de D. Sebastião, no Rossio, porque queria tirar uma selfie com o rei português. Foi uma semana cheia de idiotice, portanto.

Vamos lá ver: idiotas sempre houve. Contudo, a idiotice tendia a ir passando com a idade. Chama-se a isso crescer e crescer traz consigo uma coisa que, se até pode tirar alguma da pimenta da vida, dá, pelo menos, muito jeito: a capacidade de distinguir o que está certo do que está errado. Ah, e a capacidade de prever consequências para os actos praticados. Aparentemente, estes dois moços, aos dezanove e aos vinte e quatro anos, não desenvolveram nenhuma das capacidades.

Mas também como? Como se pode crescer num mundo onde a imprensa se refere ao tipo que tira uma selfie a segurar um cachorrinho fora de uma janela num andar alto como sendo "adolescente" aos dezanove anos? Aos dezanove?! A sério que ainda está na adolescência? Então quando é que acaba essa fase da vida? Mas tu queres ver que eu aos trinta ainda sou adolescente? Ah, então se calha vou só ali pôr o gato no forno, tirar uma fotografia e já volto. 

Aos dezanove anos o meu pai já levava vários anos de trabalho na sua vida. Aos dezanove anos eu já estava na faculdade. Quando terminei o meu terceiro ano de curso tinha precisamente essa idade e, embora me divertisse muito, nunca me deu para pendurar nenhum animal numa janela só porque é giro (não é) e capaz de dar uma foto com muitos likes (também não, é apenas estúpido e cruel).

Aos vinte e quatro anos estava quase a terminar o mestrado. E não era a arrastar-me: fazia-o com boas notas e com gosto. Divertia-me, mas sem incomodar ninguém. Trabalhava ao mesmo tempo. Tinha consciência de que os actos levam a consequências. Aparentemente também, o homem que partiu a estátua no Rossio, ainda que não fosse essa a sua intenção, não percebeu ainda essa parte. Tirar a selfie é que era importante. Depois pensaria no resto.

Em comum nas duas histórias além da idiotice está a maldita necessidade de se mostrarem ao mundo. Está a ridícula cultura da selfie e, pior, a competição pela aprovação (em forma de likes) dos outros. Num mundo de imagens, já não chega sorrir para a câmera, agora é preciso arriscar mais, tentar ser diferente, mesmo que diferente passe a ser o sinónimo de estúpido. O pior é ver estes comportamentos em gente em quem a idade já não serve como justificação. Como é possível que aos dezanove e aos vinte e quatro anos alguém faça coisas destas? Como é possível alguém achar que a crueldade com um animal seria coisa gira de se ver e não levantaria enorme celeuma e revolta? Como é possível alguém ter tão poucos valores que em nome de uma foto trepe a um monumento nacional? Por azar dele, a estátua, que vista cá de baixo parecia tão segura, afinal não estava. Por azar nosso, foi mais um pedacinho do nosso património que ficou em pedaços.

Odeio a cultura da selfie. Atenção: não odeio selfies (quando viajo sozinha com o moço tiramos imensas, pois não temos quem nos tire fotos). Mas odeio esta necessidade infantil de aparecer, de exibir, de mostrar aos outros na expectativa do like. Odeio que se tratem homens feitos como adolescentes, quase desculpabilizando a insensatez da atitude. Odeio estes tempos onde impera a idiotice e a desresponsabilização. Odeio esta cultura da imagem na qual já poucas valem mais do que mil palavras: a grande maioria não vale palavra nenhuma. Só silêncio e pena.

1 comentário:

  1. Estou 100% de acordo.
    Existe um imenso vazio dentro das pessoas. Que é preenchido com futilidades. E "essa embalagem" oca criada e cultivada pela triste sociedade em que vivemo, faz-nos assistir a muita tristeza.
    Um bom fim-de-semana! Não vamos perder a esperança!!!! Ainda há muita gente diferente.
    Um beijinho.

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