quarta-feira, 10 de maio de 2017

Peculiaridades de um leitor VI


Emprestar livros. Duas palavras que, quando juntas, são o terror de muitos apaixonados pelos seus livros. Lembrei-me de falar disto porque na aula da semana passada, a professora que está a falar sobre o Se numa noite de inverno um viajante, do Calvino, falou sobre o facto de ter emprestado a sua primeira edição desse livro e de nunca mais o ter visto. Lembrou, a propósito, as sábias palavras de uma maravilhosa filóloga já falecida que tive como docente no meu curso, Maria Lúcia Lepecki: «Mas você não sabe que nunca se empresta um livro!». Concordo inteiramente com ela.

Abro algumas excepções: a minha mãe e a minha irmã. E fico por aí. Empresto-lhes porque sei que as vejo com frequência e que o livro volta (no caso da minha irmã corro o risco de ele ser tão bem arrumado que leva anos a reaparecer, mas pronto). Mas não empresto a mais ninguém. Isto perturba algumas pessoas que acham de um egoísmo enorme não permitir que outros leiam os meus livros e depois os devolvam. Mas vamos ver: já emprestei livros que não voltaram e outros que regressaram em mau estado. Cheguei a um ponto em que disse que bastava: não andava a comprar livros e a estimá-los tanto para depois não os voltar a ver ou reencontrá-los sujos e muito diferentes do estado em que os emprestei. Quem me conhece bem nem me pede livros emprestados (muito menos os Quixotes). Quem não me conhece assim tão bem distrai-se e solta um «A ver se me emprestas um livro para eu ler nas férias.». Nunca se concretiza.

Há, portanto, dois tipos de donos (e amadores) de livros: os que emprestam e os que se recusam a fazê-lo. Respeito os dois. O que não respeito é a mentalidade de tantas e tantas pessoas que se «esquecem» de devolver aquilo que pedem emprestado. Se alguém me empresta alguma coisa, devolvo o mais depressa possível. Aliás, até evito pedir coisas emprestadas precisamente para não sentir a pressão da devolução. Mas cada vez me acho mais um bicho raro porque me parece que eu e a minha mãe somos as únicas a pensar assim. A minha irmã disse-me há uns tempos que tinha ficado sem dois dos seus livros favoritos porque os emprestara sem que os devolvessem. Um deles está esgotadíssimo e nunca mais conseguiu um exemplar. Isto faz sentido? Para mim não.

Claro que tudo isto depende do grau de desprendimento que temos em relação às nossas coisas e eu sou muito picuinhas. Há quem não se importe assim tanto com o facto de o livro não voltar ou com a possibilidade de ele não regressar exactamente como foi. Afinal, os livros são para ler e não para adorar as suas páginas imaculadas. Contudo, eu não consigo ser assim. Acho que se me esforço para ter a minha biblioteca ideal, não mereço depois que alguém me desapareça com os livros ou que os trate mal. Provavelmente até paga o justo pelo pecador, mas infelizmente não vejo como possa ser de outra maneira. Abro as já referidas excepções e fico-me por aí.

A relação de um apaixonado por livros com a sua biblioteca pessoal é difícil de compreender e varia muito de pessoa para pessoa. Acho que um verdadeiro leitor cria com o objecto uma relação de empatia que dificilmente se repete. Tendemos a ter os livros de que gostamos e, por isso mesmo, custa-nos mais perdê-los. Não é justo que a perda surja precisamente depois de um acto generoso quanto o de emprestar um livro. Como no caso da minha irmã, em que emprestou os seus livros favoritos e foram precisamente esses que se foram. Imaginem-me a coleccionar Quixotes para depois ficar sem eles ou vê-los voltarem em mau estado. Acho que me tornaria numa pessoa violenta. Mesmo muito violenta.

Por isso não pude evitar sorrir quando ouvi citada a teoria da Prof.ª Maria Lúcia Lepecki, pois é também a minha há já muito tempo. Já cheguei a pensar que era mesmo má pessoa por não emprestar os meus livros, mas afinal não sou a única. Até os professores universitários vão chegando à mesma conclusão. Infelizmente, não podemos achar que todos são certinhos como nós e, como costumo dizer, «bondade a mais é burrice». 

E vocês, «quixoteiros», emprestam os vossos livros? Contem-me tudo. Falem lá das vossas peculiaridades enquanto leitores. 

Nota: A imagem saiu daqui.

6 comentários:

  1. Hell no! Empresto à minha irmã porque a vejo quase todos os dias e ela também me empresta os dela, mais nada.

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  2. Não empresto livros.
    Abro raríssimas excepções. Quando os emprestava voltam muitos meses depois totalmente estropiados.
    E para não me aborrecer, deixei de emprestar. Ao "tens que me emprestar" faço-me de morta e geralmente nunca mais se lembram de mo pedir.
    Há outra questão: o passar a olhar para as pessoas de forma diferente, quem não devolve, seja o que for, nas mesmas condições não me merece muita consideração.
    (O mesmo acontece quando vejo que não tratam bem animais ou quando tratam empregados - de lojas, de restaurantes ou varredores de rua - como se não fossem humanos mas escravos cuja missão na vida é servi-los. Mas isso é outra história.)

    Nunca peço nada emprestado, nem me lembro da última vez, e se o fizer devolvo o mais rapidamente possível tal qual me chegou às mãos.
    O mínimo é que façam o mesmo comigo.

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    1. Já para não falar de quando nem sequer voltam ou de quando temos de referir o livro emprestado para ver se a pessoa percebe que está a abusar um bocadinho no tempo de empréstimo.

      Compreendo o que dizes sobre olhar para a pessoa de forma diferente. Acho que é porque nestas pequenas coisas descobrimos facetas novas nas pessoas. Uma coisa que me faz confusão são as pessoas que passam pelas funcionárias da limpeza e nem um bom dia, nunca param para trocar umas palavras com elas. Na escola onde trabalhava falava imenso com as senhoras da limpeza e de vez em quando ainda lhes ligo para saber como estão.

      Mas voltando aos livros, se as pessoas percebessem que, apesar de serem objectos relativamente baratos, têm donos que os querem de volta no mesmo estado em que foram, se as pessoas cumprissem isto, emprestar livros até seria uma coisa bonita. Infelizmente reina o desrespeito. «É só um livro.», devem pensar eles. Não interessa: é nosso. Nem que seja um livro podre de velho e sem valor comercial nenhum: é nosso. E invariavelmente vou ouvindo as mesmas histórias: empréstimos sem devolução ou devolvidos com dobras, vincos, riscos, manchas... Um nojo. Por isso, pelo pecador paga o justo e não empresto.

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    2. Sim, por vezes vemo-nos obrigadas a relembrar o livro que emprestámos. Meses a relembrar!
      Aconteceu-me isso com um da Sra Jane Goodall.
      Outro episódio foi com "A Moeda Viva", um livro de que gosto muito.
      Foi-me devolvido com capa e folhas rasgadas, como se o tivessem espezinhado e amachucado. E nem lido foi. Tinha-o comprado mal saiu, havia poucos meses.
      Tenham paciência, há muitas e boas bibliotecas públicas.

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  3. Eu empresto. Não tenho grandes problemas com isso... Claro que quero que mos devolvam e que venham em bom estado, mas apesar de às vezes a devolução ter demorado, acho que nunca fiquei sem nenhum. Em relação às marcas de uso, se for moderado não me importo, aliás eu também dobro páginas para o marcar e estar usado é bom sinal, foi muito lido. A única pessoa que quase me destruiu um livro de tão usado foi a minha irmã "Rio das Flores", abriu tanto, mas tanto - demora séculos a ler - que a lombada ficou quase um círculo fechado. Aí fiquei muito chateada, nem o quis de volta.

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