terça-feira, 24 de março de 2020

Para o que estávamos guardados II

Hoje, enquanto fazia o passeio matinal com a Cão, notei o enorme silêncio daquela praceta onde, normalmente, se ouvem os sons da pastelaria (encerrada ainda antes de o Governo o ter decretado), alguns carros que passam, pessoas que se cumprimentam, que conversam, enfim, o som da vida de todos os dias. Durante aqueles dez minutos não ouvi praticamente nada que não fosse o som dos meus passos e isso nesta cidade é, diga-se, bizarro. Além disso, vi em várias janelas desenhos infantis de arco-íris. Uns em janelas de andares mais altos, outros mais perto do chão, todos teriam, na verdade, a mensagem em que queremos mesmo acreditar: «Vai correr tudo bem.»

De repente, no meio do silêncio e de desenhos infantis, é inevitável pensar que antes de tudo correr bem, corre mal. E foi precisamente por isso que não ouvi nada, não senti o aroma dos bolos ainda quentinhos, do café acabado de tirar, das pessoas que conversam sobre futebol: porque subitamente correu tudo mal e, para não correr pior, estamos a fazer a nossa parte e a contribuir com o nosso próprio silêncio, fechando-nos em casa. No fim espera-se o arco-íris, mas por agora não se sabe muito bem quando ou como chegaremos ao dia em que ele aparecerá.

O inimigo é silencioso, oportunista, e faz-nos desconfiar. Outro vizinho passeava o cão à mesma hora, regressámos ao prédio ao mesmo tempo e parecia que fazíamos uma dança bem ensaiada e coordenada, mantendo sempre uma distância que nunca diminuiu. Os pobres animais bem queriam aproximar-se, mas os seus humanos não podiam. Eu subi pelas escadas e o vizinho foi de elevador.

A Cão dormiu durante boa parte do dia, os gatos fizeram o mesmo e eu trabalhei. De vez em quando os olhos saltavam do papel para a janela, olhavam lá para fora e procuravam indícios de normalidade ou, mais provavelmente, do seu contrário. E encontravam. Os estacionamentos cheios porque as pessoas estavam em casa; mais janelas abertas e mais roupa nos estendais; menos carros a circular; menos gente a passar; mais crianças à janela com os pais em horas que seriam, em dias comuns, passadas na escola. Voltaram os olhos ao trabalho e assim passou o tempo até ao noticiário e aos números do dia. O arrepio diário quando chegaram as novidades, quando assisti às imagens dos que ainda não perceberam a gravidade do problema e querem continuar a passear aos magotes. O murro no estômago quando saltamos da realidade nacional e passamos para Espanha e para Itália. A dor de cerrar os punhos com toda a força e o desejo enorme de que nunca sejamos nós. De que o arco-íris, que tarda tanto, chegue depressa.

Engole-se em seco e engole-se o almoço. Mais horas de trabalho com espreitadelas rápidas às notícias mais recentes. Cada vez menos espreitadelas porque, a certa altura, é preciso não ceder à tristeza. Convém não esquecer que as fronteiras são as minhas paredes e só isso é suficiente para cansar a alma. Acaba o dia de trabalho, come-se qualquer coisa e chega mais um noticiário. Só os primeiros quinze minutos. Depois um livro, uma revista, um jogo, o branco do tecto, qualquer coisa. O dia acaba e o próximo será igual. Falta-me fazer este risco no calendário, mas nem me preocupo: tenho tempo e não me vou esquecer dos dias em que ficar em casa foi a solução possível.

Amanhã o dia será assim também. Ainda não veremos o arco-íris, parece-me que ele se fará esperar. Amanhã serão apenas mais umas horas em casa, fazendo sem companhia o que normalmente faço rodeada de gente. Será um dia com outras notícias, o mesmo arrepio na espinha, o costumeiro murro no estômago, o medo e a saudade daqueles que não posso ir ver. Será mais um dia para ir à janela e ver a vida diferente dos que só a querem igual ao que sempre foi, mesmo que não fosse perfeita. «Éramos felizes e não sabíamos», dizia-me alguém num destes dias. Nunca a frase me pareceu tão certa.


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