É com algum embaraço que digo que deixei o Ensaio Sobre a Lucidez sem o terminar. Detesto deixar livros sem acabar de os ler, mas a verdade é que tenho o cérebro demasiado esgotado para aguentar mais duzentas páginas (era o que faltava) de uma metáfora política. Adoro Saramago, não descansei enquanto não comprei todos os seus livros e leio-os muito vagarosamente para aproveitar tudo o que têm para me dar. Contudo, a papa que me recheia a cabeça (sim, porque duvido que o meu lindo cérebro se mantenha no estado sólido que seria esperado) não estava a aguentar, após dias de trabalho intenso, páginas e páginas de um texto sobre votos em branco e um regime que quer saber por que razão a maioria não colocou cruz alguma no boletim de voto. Devo, ainda assim, dizer que há naquele livro frases fabulosas, semelhantes a muitas outras a que José Saramago nos habituou.
Ora, como não consigo estar sem ler um livro, deixei o Ensaio Sobre a Lucidez, mas iniciei logo outro... também de Saramago. Desta feita fui até ao seu primeiro romance, Terra do Pecado, de 1947. Nele, encontramos uma escrita muito canónica, sem as características que estamos habituados a encontrar desde o romance Levantado do Chão (inclusive). Embora estejam lá algumas sementinhas do que veio a ser o grande Saramago da década de oitenta e noventa do século XX, percebe-se bem que aquilo era só o início do percurso. Fazendo contas de cabeça, por alturas da publicação de Terra do Pecado, Saramago teria vinte e cinco anos, pouco menos do que a idade que eu tenho agora e nota-se bem que aquele texto é o primeiro ensaio de alguém que quer escrever. Melhor: de alguém que lá leu este mundo e o outro (curiosamente, uma expressão que deu nome a um dos seus livros) e que agora quer passar para o outro lado e tornar-se escritor. Encontro ali frases feitas, ou seja, expressões a que os autores recorrem de vez em quando, principalmente quando a experiência ainda não é muita, e que não encontro nos livros de um Saramago mais tardio (aí o que vejo é um autor que põe os seus narradores a desconstruir tudo o que é provérbio e frase batida). Todavia, tem a sua graça ler aquele que foi o primeiro passo num mundo que depois dominou como um mestre.
Mas, minha gente, aquilo de que mais gostei até agora no primeiro romance de Saramago foi do «Aviso» escrito por ele e que antecede a narrativa. No fundo, o autor apresenta-se e só lamento não encontrar uma data nesse aviso, pois gostaria muito de saber quando foi produzido. A ter sido na mesma altura que o romance, então atrevo-me a dizer que ali sim, ali encontramos os primeiros traços do Saramago que todos conhecemos. Se, por outro lado, o texto é posterior (muito ou pouco) à escrita de Terra do Pecado, então o que ali está é mais um texto deliciosamente «saramaguiano» e que nos incute desde o início alguma simpatia para com aquele autor iniciante. Deixo-vos um pedacinho desse texto que serve para conhecermos um pouco melhor o nosso Nobel. Depois vou ler mais umas páginas.
«O autor é um rapaz de 24 anos, calado, metido consigo, que ganha a vida como praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano como aprendiz de serralharia mecânica nas oficinas dos ditos Hospitais. Tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na biblioteca municipal das Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar. Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartição, segundo-oficial, de apelido Figueiredo, lhe emprestou trezentos escudos para comprar os livrinhos da colecção «Cadernos» da Editorial Inquérito. A sua primeira estante foi uma prateleira interior do guarda-louça familiar. Neste ano de 1947 em que estamos nascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúva mas que vai aparecer à luz do dia com um título a que nunca se há-de acostumar. Como no tempo em que viveu na aldeia já tinha plantado umas quantas árvores, pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu este livro porque numa antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os adolescentes, falandos uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho-de-ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física, imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para aviador militar. Acabou em manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica, e tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. [...]»
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