Gosto muito de ouvir e ler as palavras da Maria Filomena Mónica. Gosto da sua maneira de pensar e da forma como em três ou quatro linhas esquematiza os nossos problemas e as suas origens. Percebo-a como gostaria de ser: cultíssima e sem papas na língua (já para não falar do meu desejo secreto de chegar à idade que tem hoje com o bom aspecto que lhe conhecemos). Há uns tempos ouvi-a falar da malfadada figura do Zé Povinho e só me faltou aplaudi-la de pé quando disse que era tristíssimo que nos sentíssemos representados por uma figura que «faz manguitos ao patrão quando vira as costas porque não têm coragem de os enfrentar de frente». Ouvi-la falar do nosso país é, enfim, um prazer, ainda que o retrato em que nos pinta não seja, de todo, o mais bonito.
A Maria Filomena Mónica e o António Barreto são duas figuras que, pelo modo como nos analisam, se tornam fascinantes e, assim, ouvi-las enriquece-nos. Podem ter, por vezes, ideias menos felizes, mas isso todos temos. Numa rápida pesquisa pela internet percebi que a investigadora do ICS não cai nas boas graças de algumas pessoas que a vêem como uma snob com a mania de que é britânica. Enfim, são opiniões. A mim parece-me uma mulher admirável que diz o que têm a dizer e que tem uma cultura invejável.
Tendo isto em consideração, faz-me alguma confusão que a maior parte dos seus livros não estejam disponíveis. Comprei dois dela na Feira do Livro na semana passada, mas não eram aqueles que mais queria. Os que gostava mesmo de ter aparecem em todo o lado como estando esgotados e nem em alfarrabistas consigo dar com eles! Por isso, hoje contentei-me com a entrevista que saiu no jornal I deste fim-de-semana e com partes do livro Passaporte, um dos que trouxe da Feira do Livro. Nele, Maria Filomena Mónica fala de algumas viagens que fez. Li o que escreveu sobre o islão ibérico, sobre Lisboa, sobre Oxford (onde estudou... que inveja!) e sobre uma Inglaterra apresentada do ponto de vista literário. Aqui, a autora olha para alguns pontos desse país que estão ligados a autores como Dickens, Emily Brontë, Thomas Hardy e Robert Louis Stevenson. O quinto ponto desse texto fala sobre um espaço que me parece bem próximo da minha ideia de paraíso na terra: um local meio mortiço a que alguém resolveu dar vida fazendo ali uma pequena «cidade de alfarrabistas». Segundo o que ela nos diz, ali encontra-se tudo: mesmo aquelas raridades bibliográficas que já não se vêem em nenhum outro lugar. Neste texto, encontramos um amor aos livros que me faz gostar ainda mais desta senhora. E como este é um sentimento que pede partilha, deixo-vos dois parágrafos que me fizeram sorrir por me terem lembrado de mim, dos meus gostos e insónias em vésperas de dias que me aqueciam o coração.
«Há tempos perguntaram-me se não gostaria de conhecer a Índia. Para espanto do interlocutor, a minha resposta foi negativa, uma atitude que deriva de eu saber que a cultura daquele continente é demasiado diferente da minha, carecendo de muitos anos de leitura antes que possa começar a compreendê-la. É por isso que, em vez de turismo, gosto de voltar aos sítios onde me sinto em casa. Nesta lista, Hay-on-Wye tem um lugar cimeiro. Aliás, em poucos locais fui tão feliz quanto aqui. O prazer que me assaltava quando em criança, antes de iniciar um ano lectivo, me deslocava a uma papelaria, a fim de adquirir lápis, borrachas e cadernos, ressuscita mal lá chego. Tal é a minha excitação que, na primeira noite, nunca consigo dormir.
[...]
Apesar de a maior parte das livrarias de Hay-on-Wye fecharem depois do horário normal, há que preencher as noites. Não é difícil: entre a elaboração da lista de obras a adquirir no dia seguinte e as canecas de cerveja bebidas no Old Black Lyon, o sono não tarda. Se, na primeira noite, se sentir tão frenético quanto eu, lembre-se que o sol se levanta todas as manhãs e que os livros nunca hão-de fugir de Hay-on-Wye.»
Maria Filomena Mónica, Passaporte, Alêtheia Editores, 2009.
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