sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Livros de cabeceira I


Não consigo conceber a vida sem um bom livro a acompanhar-me. Preferencialmente mais do que um. Custa-me compreender que existam pessoas que passam por este mundo sem o prazer de ler um livro, de sentir o cheiro do papel, de sublinhar passagens inesquecíveis, de dobrar o canto de uma página porque não encontra nada que sirva para a marcar. Nós, que amamos os livros, até podemos fazer deles a base da caneca de chá durante o Inverno: é condição que nos é permitida porque nem por isso gostamos menos daqueles volumes. É uma espécie de amizade em que usamos e abusamos. Mas eles também abusam de nós, agitam-nos, dão-nos verdadeiros safanões. Quem nunca leu um livro nunca saberá o que é levar uma bofetada no rosto com uma página mais intensa. Nunca saberá o que é adormecer com um livro nas mãos e levar com ele em cheio no nariz. Parece mau? Olhem que não é. Uma vez levei com a edição da Relógio d'Água do Quixote na cara porque tive a triste ideia de adormecer e o livro não gostou. Hoje rio-me da situação: na altura despertei de mão no nariz e terminei o capítulo com que adormecera. O livro sentiu-se mais respeitado e não voltou a bater-me.

Sempre tive livros na mesa de cabeceira. Na maioria das vezes mais do que um, juntamente com as revistas sobre livros que compro todos os meses. Ainda que me saia sono por todos os poros, sou incapaz de ir dormir sem ler umas páginas! Para muitos serei de uma espécie rara que merece ser estudada pela ciência. Seja. A verdade é que não concebo a vida de outra forma.

Agora a mesa de cabeceira está habitada por estes dois senhores: Cervantes e Charles Dickens. O primeiro, com a sua obra-prima D. Quixote de la Mancha, dificilmente sairá de lá. É o livro da minha vida e, ainda que seja novinha, atrevo-me a dizer que nenhum outro ocupará o seu lugar. Encontro nos desvarios de Alonso Quijano, virado D. Quixote, tudo aquilo que poderia procurar numa boa história. Passaram quatrocentos anos desde que foi publicado e é hoje tão actual como era em 1605. Não perdeu a graça e, nos momentos em que não pretende ser hilariante, ainda hoje emociona. O volume da fotografia corresponde à fenomenal tradução/adaptação feita pelo nosso grande (e tristemente muito esquecido) Aquilino Ribeiro. Para quem já leu o Quixote várias vezes, ler esta tradução é um bombom: o vocabulário bem português que é capaz de escarranchar o Sancho em cima do burro e de o fazer autodenominar-se de «ignorantão» é absolutamente maravilhoso.

Já o David Copperfield, livro de que sempre fugi por ter receio de que fosse estupidamente triste (coisa que odeio profundamente), apanhou-me. É fascinante como uma história comovente consegue ser contada de forma tão cativante e como aquele pequeno herói se desenvencilha com grande mestria de situações tão desarmantes para a maioria de nós. Um dos artifícios com que escapa, num período da sua vida, de uma terrível opressão consiste em refugiar-se na leitura dos livros que o pai lhe deixara. E que lê ele? Os clássicos, de entre eles D. Quixote de la Mancha, o mesmo que hoje releio...

A leitura é mesmo assim: abre-se o David Copperfield e encontra-se o Quixote. O mesmo Quixote que mora ao lado de David Copperfield na minha mesa de cabeceira. Dá para resistir a isto?

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