domingo, 8 de outubro de 2017

La Mula - o balanço


La Mula é um livro do autor espanhol Juan Eslava Galán, conhecido entre outros aspectos por dotar os seus textos de humor e ironia. Neste caso, a acção decorre durante a Guerra Civil Espanhola que opôs republicanos e falangistas. O protagonista é um homem chamado Castro, que iniciou a sua vida militar pelos «rojos», mas que optou por mudar de lado e combater ao lado das tropas de Franco. Era responsável pelas mulas da sua companhia, às quais cabia a missão de transportar material bélico de umas trincheiras para outras. 

Um dia, Castro, enquanto andava a apanhar espargos, encontra uma mula perdida. Mansinha, dócil, resolve levá-la para junto das restantes de que toma conta e levá-la consigo para casa quando tudo terminar. Dá-lhe o nome de Valentina, pois era muito valente por andar pelos campos junto a um cenário de guerra sem se assustar, e faz dela uma amiga. Valentina torna-se o símbolo de uma vida pós-guerra na paz do lar. Castro era um homem de aldeia, trabalhador rural, quase analfabeto. Consigo, o destino de Valentina seria o de trabalhar no campo, mas isso também significaria que o conflito terminaria e que poderia regressar a casa. Ao longo do livro falará muitas vezes com a mula, sempre com um carinho enorme e a esperança de que ela venha a ficar com ele. Para que isso aconteça, vai constantemente adulterando os formulários que preenche: em vez das vinte e cinco mulas que se encontram ao seu cuidado, apenas dá conta de vinte e quatro, mantendo Valentina em segredo para que não seja tomada por mais um dos animais pertencentes ao exército.

Mas Castro e os seus companheiros de guerra também servem para mostrar como era a vida destes soldados, como se trocava facilmente de lugar entre republicanos e falangistas porque num dos lados a comida era melhor do que no outro; como as cidades e aldeias ficaram destruídas ao mesmo tempo que outros negócios floresciam, como a venda de objectos roubados às vítimas da guerra (há inclusivamente uns brincos de ouro ainda sujos de sangue) e as casas de «meninas»; como a propaganda falangista distribuía medalhas a uns quantos heróis de guerra (sendo Castro, por um equívoco, um deles), mandando-os novamente para o perigo da frente de batalha; como algumas meninas casadoiras procuravam esquivar-se aos avanços de soldados sem futuro, aceitando apenas os que pretendessem continuar a carreira militar após a guerra, pois esses poderiam fazer delas umas «señoras» com bons vestidos e uma boa vida (o amor pouco importava nestes casos); como as populações espanholas ficaram numa miséria tão grande que é mais do que óbvio o contraste ente as cerimónias de propaganda ou de celebração da vitória dos falangistas e os pobres desgraçados famélicos que continuam a tentar subsistir nos campos, rezando por um pedaço de pão duro; como amigos se viram separados por uma ideologia política que muitas vezes nem seguiam, mas pela qual se viram obrigados a lutar; como os próprios soldados, carne para canhão, viviam em condições tão miseráveis que um banho era um luxo desconhecido, ao contrário dos piolhos que eram o que mais tinham sobre si. Ou seja: entre o humor da escrita do autor, conseguimos perceber uma série de situações que nada têm de risível e que são provocadas pela guerra.

O protagonista ver-se-á, em determinado momento, coroado como um herói de guerra, sem perceber muito bem como. Todavia, na verdade o que lhe importa mesmo não é a medalha que Franco lhe coloca no peito: é a mula Valentina e o facto de poder ou não levá-la consigo quando o conflito terminar. Pelo meio tem uma noiva, mas até ela se vai ao trocá-lo por outro militar com maiores hipóteses de ter um futuro risonho. Assim, só lhe resta mesmo a mula. A guerra não lhe trouxe mais nada além da medalha (de que não fazia questão) e de Valentina, a quem quer muito. 

Um dia declara-se no rádio a rendição dos «rojos» e vitória dos nacionalistas. Terminou a guerra, será tempo de regressar a casa. Mas antes ainda é necessário ir mostrar o triunfo em algumas povoações. Castro bem pede licença para ir ver a família, já que o comboio passará junto à sua aldeia, mas não lhe é concedida. De coração nas mãos, passará esses dias a pensar no modo como poderá levar Valentina para longe dos outros animais do exército. Quanto ao fim da história, não conto mais nada.

Quando pensamos que a Guerra Civil Espanhola aconteceu aqui ao lado há menos de um século, instala-se uma sensação de estranheza. Mas este conflito existiu mesmo e foi muito dramático. Em La Mula, Galán procurou dar ao leitor uma história meio anedótica que consegue simultaneamente deixar perceber o que a guerra fez à vida de todos: soldados e suas famílias, populações locais e, no fim de contas, ao próprio país. Castro, por exemplo, fica a saber que o pai foi preso e que a mãe e a irmã passam muitas dificuldades, algo que até aí nunca tinha acontecido. Por isso, no meio do humor, da comicidade da linguagem tão vernácula dos combatentes, há uma tristeza que nunca desaparece. Como diria Pessoa, são «Malhas que o Império tece» e que sempre acabam por enredar os mesmos.



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