Desde que me lembro, existiu no fundo da rua dos meus pais uma papelaria pequenita, mas onde parecia haver de tudo. Ainda cheguei a comprar por lá alguns cadernos de capa azul e argolas brancas para remediar o fim súbito do caderno quadriculado de Matemática. Também ainda tenho os lápis de cera que a minha mãe me comprou lá algures no meu segundo ciclo. Permanecem impecáveis e, pelo que sei, a minha sobrinha vai-lhes dando uso. De lá saíram muitas folhas de papel de embrulho, vendidas avulso e tiradas cuidadosamente de um escaparate em frente ao qual eu passava algum tempo a escolhê-las. De lá saiu, também, o meu primeiro porta-moedas: vermelho aos corações, na moda do iniciozinho dos anos 90, como se queria. Sobre o balcão costumavam estar as revistas e, enquanto a minha mãe registava o Totoloto (mais tarde o Euromilhões), eu namorava-as todas e namorava também as ofertas que elas traziam. Ao lado do balcão costumava estar um escaparate giratório onde se encontravam as bandas desenhadas e as revistas de cruzadas e enigmas de que tanto gostava. Muitos livros do Donald, da Turma da Mônica e mesmo revistas da Barbie ou da Rua Sésamo sairam de lá. Assim como umas quantas saquetas de cromos para colecções que invariavelmente deixava por terminar.
Dessa papelaria pequenita saiu o meu primeiro livro de Mário Vargas Llosa, A Tia Júlia e o Escrevedor, em edição promovida por uma revista qualquer. Nem sei que idade teria, mas tanto o cobicei na montra que a minha mãe acabou por comprar-mo. Foi, talvez, um dos meus primeiros passos na literatura a sério.
Depois chegou a altura em que o Jornal de Notícias lançou uma colecção de clássicos que saíam semanalmente a 6.95€ com o jornal. O primeiro volume era gratuito e intitulava-se Dom Quixote de la Mancha. Foi nessa edição pejada de gralhas que li aquele que se tornou desde esse primeiro encontro no meu livro favorito. Semana após semana, a senhora da papelaria guardava-me os livros. Mesmo em férias, guardou-mos religiosamente. Aliás, guardou essa colecção e outras que se seguiram e que também fiz. Guardava-me um jornal quando lho pedia, trocava-me as moedinhas em notas que a ela davam-lhe jeito as moedas para os trocos. Enfim, chegou a dar-me livros que lhe iam ficando dos tais brindes que vinham com jornais e revistas. Encomendou-me livros que não consegui comprar quando saíram com o jornal... Era muito porreira.
Essa papelaria deixou de existir no ano passado. Anteriormente havia passado por um processo de modernização que estragou mais do que beneficiou. Depois passou a estar ao balcão um namorado da senhora que era muito antipático. Lembro-me de lhe ter pedido para me guardar um jornal no dia seguinte e quase tive de deixar-lhe o Cartão de Cidadão e um comprovativo de morada. A confiança que sempre havia tido (e que a senhora da papelaria tinha tido em mim) morria com aquela fraca aquisição. Daí para a frente o declínio foi ficando mais óbvio, a loja cada vez mais vazia, a senhora cada vez mais ausente devido à doença dos pais que a obrigava a dedicar-lhes toda a atenção... Até que fechou de vez e, inevitavelmente, apareceu na porta a dizer "Arrenda-se". Depois de vinte e oito anos a conviver com aquela pequena loja e a encontrar lá de tudo (até a revista Ler quando parecia que todos tinham medo de não a vender), desaparecia um dos espaços comerciais mais conhecidos e acarinhados da zona.
Agora se quero uma revista que não aquelas mais óbvias (Sábado, Visão, revistas de culinária, revistas cor-de-rosa...) tenho de ir a um centro comercial porque aquilo que aqui nos sobrou vende o básico dos básicos. Só vendem aquilo que sabem de antemão que será comprado. National Geographic - Historia? Havia de ser verdade. Historia y Vida? Sim sim... Revista Ler? Nos meus sonhos mais estranhos apenas. Até para comprar a Visão História é preciso esperar séculos até que a desgraçada cá chegue!
Na papelaria antiga as coisas não eram assim. Era uma loja de bairro, era comércio tradicional, mas fazia ver a muitas lojas maiores. Vendendo mais do que jornais e revistas, conseguia, ainda assim, ter variedade. E conseguiu, durante muitos anos, ter a simpatia e o cuidado que se querem nestas lojas de proximidade. No momento em que faltou a simpatia e a confiança, começámos a contar os dias para o fecho das portas e, de facto, assim foi. Mas não deixo de ter pena de que estas lojas se percam. Para muitos podem não ser importantes, mas para outros sê-lo-ão, com certeza. Não deixo de olhar para a porta da antiga papelaria e de me surpreender pelo facto de já lá não estarem jornais e revistas. Agora não está lá nada e a zona ficou, parece-me, muito mais pobre e aborrecida.
Eu adoro papelarias de bairro, têm muito mais carisma do que as do centro comercial!
ResponderEliminarConcordo inteiramente! E aquela faz cá muita falta.
EliminarHavia uma mais ou menos assim, na minha terra, bem pertinho da casa da minha avó, onde sempre comprei os meus livros escolares. Foram 11 anos (no 1.º ano não tivemos manual) em que eu, e muito provavelmente metade da cidade, adquiriu livros e outros materiais escolares. Esteve aberta durante anos (pelo menos vinte, mas provavelmente mais), e fechou o ano passado. Foi quase um choque. Fazia parte da cidade. Os funcionários ficaram com o material e abriram outro espaço, mas não é a mesma coisa... Era o seu ambiente antigo, acho eu, que lhe dava aquele quê, e agora com as promoções e vendas online das grandes casas em livros escolares, as papelarias de bairro são cada vez mais uma memória =/
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Esta papelaria não vendia livros escolares, mas de resto tinha de tudo: cadernos, borrachas, lápis, lápis de cor, envelopes... Não era uma papelaria grande, mas servia qualquer emergência (como a dos meus cadernos de Matemática que parecia que acabavam repentinamente). Fazia parte deste lugar e era um lugar de confiança: a pessoa que estava ao balcão conhecia os seus clientes e nós conheciamo-la também. Além de comprar isto ou aquilo, trocávamos duas ou três palavritas (nem que fosse sobre o tempo). Era aquela proximidade que me parece cada vez mais em vias de extinção. É triste ver desaparecer estes pequenos símbolos dos lugares em que vivemos. Sente-se-lhes irremediavelmente a falta.
EliminarEm alguns casos a culpa é nossa que fomos aprendendo o caminho para os centros comerciais e esquecendo o das outras lojas. No caso desta papelaria não foi isso que aconteceu, já que era um espaço a que as pessoas eram fiéis. Mas foi definhando devido às preocupações que a saúde dos pais trouxeram à vida da proprietária e depois devido à pessoa que pôs ao balcão nos dias em que ela não podia estar presente. Se um estabelecimento comercial precisa muito da confiança dos clientes, também necessita bastante de ser acolhedor para quem o visita. Como disse, este senhor, para reservar-me o Expresso, quase me pediu o cartão de cidadão, porque de resto perguntou-me tudo e mais alguma coisa. O fim só podia ser um. Mas lá está: o que é curioso é que já passou um ano e não deixamos de sentir a falta daquele espaço que, desde que me tenho por gente, esteve sempre ali.
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