sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Luto livresco

É um problema que merece ser reconhecido pela sociedade. Aquilo que apelido de “luto livresco” tira o sono a muito boa gente e, por isso, não deve passar sem que se lhe dê a devida atenção. Euzinha estou, neste momento, a passar por uma fase dessas e é terrível.

Mas afinal o que é isto de “luto livresco”? Basicamente são, na minha cabeça, aqueles dias que se seguem ao final da leitura de um livro muito, muito, muito bom. Depois de dias inteiros a ler um livro extraordinário, vemo-nos, repentinamente, sem a sua novidade e sem a sua companhia. Temos de reaprender a viver sem aquela história tão boa que bem nos encheu as medidas. A seguir à leitura de um livro excelente, tudo parece manifestamente pouco. Só se consegue seleccionar na prateleira um substituto depois desta fase de luto e de despedida de personagens e histórias que bem nos encheram as medidas.

Aconteceu-me isto agora com o livro Em Breve Tudo Será Mistério e Cinza, de Alberto A. Reis. Curiosamente, este foi o livro de estreia deste autor brasileiro que é, originalmente, da área da saúde. Todavia, isso não o impediu de escrever um dos livros mais cativantes que me passaram sob a vista. A história central é a de um casal francês que na década de vinte do século XIX viaja até ao Brasil para procurar ouro e pedras preciosas nas região diamantina. Arranjarão escravos (alguns deles com um papel decisivo na história) e instalar-se-ão naquele lugar, procurando a fortuna que em França lhes escapara por entre os dedos. Não vos conto o fim, mas partilho que a história vai muito além deste casal. Assistimos a lutas entre conservadores e liberais, à criação de um tribunal de júri, ao nascimento de um jornal e, aquilo que me pareceu ainda mais importante, à situação abominável vivida pelos escravos. Se houve livro que me fez pensar na escravatura, foi este. A descrição da vida destes seres humanos tratados como objectos ao serviço de supostos senhores superiores é dolorosa. No meio dos muitos momentos em que a história se torna risível, surgem estas bofetadas. Com um tempo que já está longe do nosso é muito fácil desvalorizar aquilo que é uma mancha tremenda na história da humanidade. Felizmente, livros como este ensinam-nos o que não sabíamos e que devemos saber para não repetir.

Enfim, as personagens são tantas, tão diferentes, tão bem construídas; a história tem tantos pormenores, tantos avanços e recuos (sendo quase sempre imprevisível) que vale cada página de leitura. Foi dos poucos livros que não consegui largar durante muito tempo enquanto o lia. Foi uma experiência de leitura fabulosa que aconselho a todos. Para primeiro livro, este autor colocou a fasquia muito alta. Fico ansiosa para que escreva outro tão bom ou melhor do que este. Entretanto, cá vou tentanto sobreviver ao meu luto livresco. Isto merecia algum tipo de tratamento. Que remédio arranjam para este ENORME problema?

2 comentários:

  1. Já sofri algumas vezes de luto livresco, mas acho que o pior luto vai ser quando terminar de ler a saga do Harry Potter: comprei, finalmente, no natal, o último livro, que nunca li. Estou agora a relê-los. Adivinho um luto demasiado doloroso (sobretudo agora =( ).
    Como ultrapassar? Com o tempo e coragem de pegar noutro livro. Eu tento intercalar géneros, também por causa disso.
    ****

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    1. A verdade é que todo o leitor anseia encontrar livros que nos deixem assim: a viver este luto causado por um bom texto que nos consumiu do início ao fim. No entanto, parece que tudo sabe a pouco. O ideal era conseguir ter sempre à mão livros que nos deixassem assim, mas também temos de passar pelo menos bom para apreciarmos ainda mais o óptimo. Também vou tentando não ler sempre o mesmo, ir variando a nacionalidade dos autores, mas acho que isso não cura propriamente este estado de embriaguez em que um excelente livro nos deixou. Se o livro que se segue não nos envolver tanto, a desilusão existirá sempre, independentemente do género. Mas, enfim, ainda bem que existe o "luto livresco": é sinal de que andam por aí livros muito bons para serem lidos e relidos.

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