terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Já passaram três anos

Hoje, a cada vez que abria a lição no quadro e escrevia a data, alguma coisa soava na minha cabeça, mas não sabia o quê. Quando voltava para casa percebi: a dezanove de janeiro de dois mil e treze perdi a minha avó, depois de uma luta muito injusta contra o cancro. Nunca foi uma luta de igual para igual, pois a vantagem foi sempre dele. Nunca, desde que se soube doente, houve alguma esperança real para ela, só mesmo aquela que têm até ao fim as pessoas que amam alguém que está muito doente e que não acreditam que algum dia desaparecerá.

Ainda que a soubesse doente, mantive até ao fim a esperança. Afinal, como poderia a minha avó morrer se o mundo não funcionaria sem ela? Quem agregaria a família? Quem sentaria todos à mesa na Páscoa? No fim de contas, a esperança virou nada e a avó morreu. O mundo funcionou sem ela. Isso mesmo: funcionou. Não fez mais do que o básico: girar e girar e girar. Depois, tudo o que construiu em vida pareceu perder significado para muitos e a família acabou por desunir-se. Não que antes da sua partida não houvesse um ou outro elemento que preferisse outro caminho, mas depois da sua morte, muitos laços perderam o sentido, várias bocas se abriram para dizer o que não deve ser dito. Enfim, aquilo que a avó, não só enquanto avó, mas também enquanto mãe e sogra, nos ensinou acabou por perder-se. Três anos depois, nada é melhor e a falta dela ainda se sente. Muito.

Não houve, nestes três anos, um único dia em que não me lembrasse dela. Posso jurar que me lembrei dela TODOS os dias. Nem que fosse apenas um lampejo de memória, ela esteve comigo. Outras vezes, a recordação era maior, mais concreta. Fosse como fosse, foram três anos em que o telefone não mais serviu para falar com a avó. Em que os domingos deixaram de ser o dia de saber como estava a avó, lá tão longe na sua aldeia.

Há uns meses, a minha mãe pediu-me para copiar a agenda do seu telemóvel para um telemóvel novo. Ao fazê-lo, encontrei na lista o nome “Avó”. Sem lhe dizer nada, perguntei-me se deveria apagar aquele número ou deixá-lo. Optei pela segunda hipótese. A minha avó morreu e aquele número de telefone não fará soar nenhuma campaínha na sua casa. Nunca mais ouvirei o “Está?” que dizia sempre que atendia uma chamada. Contudo, não consegui apagar o número. Lá ficou, ainda que nunca mais sirva para nada na agenda da minha mãe.

É incrível que um número que já nos disse tanto, nos sirva para tão pouco num determinado momento. Foi das coisas que mais estranhei depois da sua morte: não a saber à distância de um telefonema. Dar por perdida a rotina domingueira que consistia em ouvir a minhã mãe a falar com a sua mãe, trocando novidades ou conversa rotineira que parecia inútil, mas que era tudo (só o percebi depois, quando já não mais se podia telefonar).

Antes de escrever esta quixotada, fui ler o que escrevi sobre a minha avó dias depois da sua morte. Não me lembrava de alguns pormenores. Não me recordava de ter dito à minha avó, na última vez que falei com ela, que ainda subiríamos a correr a Serra da Marofa, como noutros tempos. Mas depois de reler o que escrevi, recordei isso e muito mais. O bom e o mau. A última vez que a vi viva. O funeral. E já passaram três anos.

Não escrevi aqui hoje um texto em que a avó fosse vocativo e em que me dirigisse a ela tratando-a por tu como se ela me estivesse a ler. Muitos fazem isso e é estúpido. A minha avó não vai ler isto; ninguém que tenha partido lê o que escrevemos depois (e mesmo que pudesse ler, a minha avó sabia lá o que era um blogue ou internet!). Mas, não fazendo esse tipo de conversa, não deixo de lamentar o muito que ela não chegou a saber. Depois dela, saí de casa dos meus pais, montei a minha própria casa, tentei fazer sopa e reparei que devia ter estado mais atenta ao que ela e a minha mãe tinham para ensinar-me porque a minha sopa é francamente má. Arranjei dois gatos que são amorosos, deixando cair a ideia de ter um Pastor Alemão (mas a vontade ainda cá está...). Continuo a dar aulas, mas com menos entusiasmo, mais desilusão e vontade de mudar de profissão. Multipliquei a minha biblioteca e agora tenho uma espécie de monstro de papel na divisão do lado. Voltei a Viana, mas não voltei à aldeia dela. Continuo a adorar o Dom Quixote (e agora tenho uma edição crítica que é fabulosa). Não deixei de ser uma apaixonada por chá sem açúcar. Ando a torcer pelo Sampaio da Nóvoa para presidente, embora apostasse que para a avó o melhor fosse o Marcelo. Enfim, nada de novo debaixo do sol, no fundo. 

Passaram três anos, ficou um vazio imenso e a certeza de que muitas vezes fomos outra coisa que não aquilo que a avó gostaria que fôssemos. O que eu nunca deixei de ser foi uma neta com saudades e com a certeza infinda de que com ela perdemos a ‘cola’ que nos unia. Muito do que era a nossa realidade familiar entre tios, tias, primos e primas, desapareceu naquela tarde de Janeiro em que a avô esperou pelos seus dois netos do coração para deixar de viver. O que eu nunca disse a ninguém é que a saudade é a maior que alguma vez senti. É diária e dói mesmo muito.

2 comentários:

  1. Nem quero pensar no que será quando a minha avó partir. O vazio que vai ficar e a saudade. O facto de me deixar sozinha. Porque é isso que vai acontecer. Não tenho uma família que seja digna desse nome... e ela é aquele pilar que sempre me manteve de pé, a lutar. Para além disso, ela foi a minha mãe. Há pessoas que nunca nos deviam deixar (deixar fisicamente, porque ela vai estar sempre comigo).
    ****

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A minha avó vivia a quatrocentos quilómetros de mim e quando cresci deixei de vê-la sempre no verão porque deixei de ir de férias para a aldeia dela. No entanto, sempre a tive como ‘cola’ da família. Era o centro de tudo e foi criadora de rituais que moldaram a nossa identidade ao longo do tempo. Acho que não tive uma relação com ela como tiveste com a tua, mas sempre tive aquela pessoa como alguém que tinha de existir, que era impossível deixar de estar cá. Era para ela qe tudo convergia, era dela a palavra que devia ser ouvida. Quando ela faleceu, ficou um vazio tão estranho. Pensei que passando o tempo... Mas três anos depois, está tudo igual. Não deixo de lembrar-me dela e de pensar que é tudo mais triste.

      Eliminar