sábado, 16 de janeiro de 2016

Em busca do livro odiado

Na quinta-feira passada, começou a sair com a revista Sábado uma edição portuguesa do Mein Kampf, o livro escrito por Hitler. Essa pérola esteve até agora sob a lei dos direitos de autor, mas tendo passado setenta anos sobre a morte (?) do tarado que a escreveu, pode agora ser reeditada sem que as editoras tenham de pagar a ninguém por aquilo. A edição tem dois volumes, estando o último para sair com a revista na próxima semana. 

No dia em que a publicação foi para as bancas, passei por várias papelarias e quiosques no caminho para casa depois do trabalho. Logo na primeira disseram-me que já tinham vendido os livros todos. Pensei logo que a coisa ia ser difícil de conseguir: o livro de um louco perigoso a ser vendido por dois euros e noventa o volume, depois de ter estado dezenas de anos sem ser reeditado (nem sei se alguma vez chegou a ser publicado em Portugal e em português), é curiosidade suficiente para fazê-lo desaparecer. Mas bom bom foi na segunda papelaria, onde a senhora olhou para mim após o meu pedido, pôs uma cara que era um misto de pena / nojo / repulsa enquanto me dizia que nem tinha recebido aquilo. Deu para perceber perfeitamente que fora uma decisão da papelaria nem sequer receber o livro. Já terem recebido a revista que tinha o asqueroso autor na capa já tinha sido uma sorte, parece-me. 

Bem, lá continuei a minha demanda e, à quarta tentativa, consegui. Novamente, recebi um olhar esquisito quando pedi o livro (tive o cuidado de pedir “o livro que saiu com a Sábado” e não “o livro do Hitler” para a coisa não parecer tão má. Mas o senhor lá me apareceu com o volume (aposto que foi lavar as mãos a seguir). Pelo sim pelo não, pedi-lhe para guardar-me o segundo e último volume na próxima semana.

Ora bem, com o livro na mão fiquei a pensar, tendo em conta as caretas que vi quando pedia o livro nas papelarias e quiosques, no que imaginariam as pessoas ao verem alguém que queria comprar o livro de um fanático responsável pela morte de seis milhões de pessoas, pela criação de uma máquina de morte imensa, pela tentativa de aniquilar um povo. De facto, pode parecer estranho que alguém no seu perfeito juízo queira ler as palavras deste monstro, mas note-se que conhecimento é poder e que o facto de ler o que ele escreveu não faz de mim uma nazi empedernida, desejosa de ir para a rua defender as suas ideias estupidamente perigosas. Seja com o livro do Hitler (provavelmente o livro mais maldito, mais odiado de todos os tempos), ou com outro qualquer que fira a humanidade, ler o que lá está serve para tentar perceber-se a génese da horribilidade acontecida no século XX. E basta ler um bocadinho, como fiz depois de jantar, para ter uma ideia de quanto aquela mente era já retorcida muito antes de fazer o que fez. Li umas dez páginas, nas quais Hitler fala da superioridade da raça ariana e da inferioridade do povo judeu e é absolutamente chocante que alguém acreditasse naquilo (mais chocante ainda se recordarmos que ele acreditava... e que os muitos milhares de pessoas que o seguiam cegamente também). 

Ler um livro implica sempre espírito crítico, seja ele um pateta romance cor-de-rosa, um bom clássico ou um livro pleno de ideias perigosas que foram historicamente postas em prática com as consequências que todos conhecemos. Importa que, além de ler, nos afastemos o suficiente para perceber o que temos em mãos e como devemos posicionar-nos perante tal informação. Ler o Mein Kampf não faz de mim nazi ou apreciadora da prosa hitleriana, assim como ler a Bíblia não faz de mim obrigatoriamente uma católica praticante e tal como ler o Código do Processo Penal não faz de mim jurista, advogada ou juíza. Transforma-me numa leitora, em alguém que quer saber mais, nem que seja para depois formar a sua opinião sobre algum tema, nem que seja para poder perceber melhor o que faz parte da história da humanidade ou mesmo aquilo que ainda hoje nos rodeia. Numa época em que assistimos ao tímido regresso (ou já não tão tímido assim) de ideias racistas e profundamente intolerantes, de um nacionalismo assustador, saber o que aconteceu no passado, onde começou e como terminou é fulcral. Como disse acima e ainda que seja frase batida, conhecimento é poder e se há quem leia disparates como os que o Hitler ou outros como ele escreveram e aplauda tais ideias execráveis, haverá sempre quem como eu leia para saber e falar com conhecimento e com justificação  na ponta da língua sobre um texto que lavou cérebros, mesmo sendo lixo em papel.

7 comentários:

  1. Não fazia ideia que o Mein Kamp estava a sair com a Sábado. Acho que, tal como disseste, é uma iniciativa com razão, tendo em conta que estamos a viver um período de tensão com casos de emigração, terrorismo, um certo renascer do nacionalismo.
    Confesso que também fiquei curiosa para perceber o que, afinal, ia naquela cabecinha e o que fez tanta gente segui-lo. Tal como tu, a intenção seria adquirir conhecimento, pelo punho de quem melhor poderia explicar o porquê de uma das épocas mais negras e vergonhosas da história da Humanidade. Nem tinha noção que já tinha passado tanto tempo desde a sua suposta morte. Um exemplo péssimo, mas um exemplo, sem dúvida.
    ****

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  2. Comprei em Inglaterra e guardei-o na estante virado ao contrário não fosse alguém entrar em casa :P Mas ainda não o li, está na minha lista!

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  3. Vais conseguir esclarecer-me uma dúvida, o livro que saiu com a Sábado tem a tradução integral do livro, ou são excertos comentados? Obrigada, queria encomendar mas não consegui ver nenhum, disseram-me que era mais 'comentário à obra'... Obrigada.

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    1. O livro é a tradução integral com uma introdução feita por D. Cameron Watt. É a tradução da edição revista que ele publicou em 1991. Tem notas de rodapé, mas nada em exagero. Olha que para livros a 2.90€ a edição não está nada má. Por aqui parece que esgotaram, mas acho que a Sábado ia lançar uma segunda edição. Ah, e tiveram a decência de não colocar o logotipo da revista em nenhum lugar visível.

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    2. Obrigada! Vou tentar encomendar, o Sr. da tabacaria perto de minha casa disse-me que conseguia mandar vir :)

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  4. Vou ver se ainda encontro o livro. É pena não ser a edição completa mas a juntar aos livros que leio, documentarios e filmes já dá para ter uma ideia mais completa. =)

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    1. Tanto quanto percebi é a edição completa com alguns comentários. É a tradução completa da edição revista em 1991. Tenta consegui-lo. A edição não está má. :)

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