sábado, 17 de novembro de 2012

Isabel Jonet e o Banco Alimentar Contra a Fome

Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, fez há já alguns dias declarações que incendiaram os ânimos de muita gente por este pacato país fora. Na altura foi a minha mãe que me perguntou se já as tinha ouvido, tendo-me dito que não via mal nenhum no que disse a senhora. Depois ouvi as opiniões de quem escutou o discurso e não gostou. Por fim, ouvi eu as suas palavras.

Nos quase seis minutos e meio em que Isabel Jonet fala da situação dos portugueses, só torci o nariz quando disse que em Portugal não existe miséria. Contudo, quando interpelada pela jornalista, a presidente do Banco Alimentar explicou que se referia a uma determinada camada da nossa população e não a todos em geral. De resto, fico sem perceber de onde vêm as razões para que tantos estejam ofendidos ao ponto de jurar a pés juntos que não mais contribuirão nas campanhas de recolha feitas pela instituição presidida por Isabel Jonet.

Percebi, sem grande esforço, tudo o que foi dito por esta senhora e acho que teve toda a razão quando disse que vamos ter de aprender a viver mais pobres porque vivemos, até aqui, acima das nossas possibilidades. O problema de quem não compreendeu foi apenas o de não ter percebido que Isabel Jonet não se referia aos portugueses todos, mas apenas a um grupo que educou os filhos na ideia de que os bens materiais são os aspectos mais importantes da vida. Grupo esse, note-se, que hoje se vê sem saber como explicar a esses mesmos filhos que afinal esses bens materiais que trazem uma felicidade efémera (já Lipovetsky o diz há muito tempo) têm de deixar de fazer parte da nossa realidade. Isabel Jonet não se referia aos que tão bem conhece e que passam fome, que já têm de pensar se devem comprar os medicamentos de que precisam ou se devem comprar comida. Não. Referia-se aos muitos que ainda hoje preferem cortar na alimentação ou naquilo que é realmente necessário para que os filhos possam estar presentes nos concertos das bandas da moda. Há umas semanas um dos nossos canais televisivos fez uma reportagem sobre o Bairro Alto e era inquietante a quantidade de menores que por ali cirandava, dizendo que numa noite gastavam entre vinte e trinta euros. Estamos a falar de menores: de onde lhes virá o dinheiro? Dos pais, claro. E se muitos pais podem efectivamente encher as mãos dos filhos de notas que não lhes farão falta, outros pais há que abdicam de muitas outras coisas mais importantes para que os filhos tenham noites de sábado bem passadas com os amigos. Onde estão as prioridades? Sabe-se lá.

Há muito tempo que vejo isto, assim como o vejo diariamente devido à profissão que tenho. Boa parte dos miúdos com os quais tenho contacto privilegiam assustadoramente os gadgets, os objectos da moda, custem eles aquilo que custarem. Ontem, uma menina de onze anos que tem a mãe emigrada falava comigo sobre as saudades que tem dela. Dizia-me que tem saudades da mãe «mas que vai ter um tablet», abrindo então um enorme sorriso. E pronto: uma coisa compensa a outra, aparentemente.

Isabel Jonet fala de desperdícios que vi acontecer em muitas casas durante tempo de mais. A questão da torneira aberta é real e é absurda, tanto por razões económicas quanto ambientais. Ainda esta semana tive de chamar a atenção a uma menina de doze anos que, na escola, manteve a torneira aberta durante uns quatro minutos para lavar as mãos antes da refeição. Note-se que esta mesma criança tinha feito um trabalho sobre a preservação do ambiente algumas semanas antes. Porém, se só a escola insiste em questões que, depois, não têm continuidade em casa, como podem estes miúdos alterar o seu comportamento?

A presidente do Banco Alimentar Contra a Fome falou, também, dos bifes e da impossibilidade de os comermos todos os dias. Foi enorme a indignação de quem a ouviu dizer que «se não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, não podemos comer bifes todos os dias». Mas afinal o que é irreal nesta frase? Substituam «bifes» por «marisco», se assim soar melhor ou for mais compreensível, e digam-me se a senhora não tem razão! Aqui a questão é sempre a mesma: muitos de nós habituámo-nos a viver acima daquilo que eram as nossas possibilidades, mas sempre fomos empurrando a situação com a barriga. Agora, essa nossa atitude deixa de ser possível e das duas, uma: ou nos atiramos da ponte por não querermos uma vida mais pobre, ou aprendemos, como disse Isabel Jonet, a empobrecer. É a realidade. O que há de ofensivo nisto?

O único motivo que encontro que justifique a inflamada reacção às palavras de alguém que já nos ajudou tanto, que tem tantas provas dadas naquele que é o seu trabalho é mesmo o da vulnerabilidade extrema em que nos encontramos. Estamos tão melindrados com tudo o que nos vem sucedendo que parecemos gatos assanhados com coisas que, basta parar para pensar, não se justificam. As palavras de Isabel Jonet são facilmente entendíveis, assim haja vontade para tal. Antes de partirmos para o apedrejamento público de uma pessoa e de uma causa tão valiosas, vale a pena ouvir e reflectir, sem preconceitos e sem procurar problemas onde eles não existem. No final de contas tudo o que levantou este problema foram palavras pronunciadas na nossa língua. É uma questão de português e todos nós temos a obrigação de o dominar bem, ao nível da produção e da compreensão. Não há ali nada que me ofenda: existe, sim, uma mensagem de alguém que, no meio dos muitos problemas que já existem, encontra ainda muitos que vivem como se não se passasse nada. Vamos ser honestos: todos nós conhecemos casos de pessoas que preferem cortar na comida só para manterem certos hábitos e vícios como o tabaco. Todos nós criticamos quem o faz. Isabel Jonet, figura conhecida, limitou-se a chamar as coisas pelos nomes e a dizer publicamente que ainda há quem enterre a cabeça na areia e finja que está tudo bem quando está tudo muito mal. Ofende? Não. Não devia ofender: devia abrir os olhos a quem ainda o faz.

Nota: A campanha de recolha de bens para o Banco Alimentar decorrerá no primeiro fim-de-semana de Dezembro. É uma causa que prezo muito e para a qual contribuirei, com certeza, com o meu saquinho de produtos essenciais. Muitos já ameaçaram não o fazer devido às palavras de Isabel Jonet. Tenho esperança de que tais pessoas ponham a mão na consciência e percebam que não será a presidente do Banco Alimentar a prejudicada, mas sim todos os que dele precisam para sobreviver. Os que tiverem essa atitude abjecta irão precisamente ao encontro daquilo de que Isabel Jonet falou: gente com as prioridades verdadeira e assustadoramente trocadas. Tenhamos todos juízo e calma porque há actos que ainda valem mais do que seis minutos e meio de palavras certeiras, porém absolutamente inofensivas.

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