sexta-feira, 29 de abril de 2016

"Os Dois Natais"


Voltando a Manuel António Pina, deixo-vos aqui a tal crónica de que falava no outro dia. Apreciem-na vocês também e digam-me o que acharam. Entretanto, já li outras muito boas ou com passagens irresistíveis. Tenha eu tempos e deixar-vos-ei aqui alguns desses excertos. É curioso que um tipo de texto tão datado como a crónica possa ter exemplares que ecoam em nós vinte e alguns anos depois de terem sido escritas. Há parágrafos que com o tempo ficarão irreconhecíveis, já que o tempo apagará os nomes das pessoas referidas e cujos feitos não foram grandiosos o suficiente para da lei da morte se libertarem; no entanto, outras frases serão eternas. Faziam sentido no início da década de noventa e  fazem sentido hoje porque são do domínio do humano e o que é nosso, por sorte ou azar, ainda não passa de moda. Por isso, estas crónicas de Manuel António Pina, assim como outras de outros autores que também já tive o prazer de ler (aqui entre nós, quando andava pelos treze ou catorze anos queria ser cronista... Ainda anda por aqui um caderno desses tempos com ‘crónicas’ minhas escritas a lápis numa letra bem desenhada.) fazem sentido, mesmo que tantos anos tenham passado. A peneira deixa cair tudo o que já não nos diz nada, mas guarda secreta e delicadamente aquilo que ainda aproveitaremos.

Deixo-vos a crónica, então.

OS DOIS NATAIS

     O Menino Jesus, deitado, olhava em volta e não compreendia. Entrevia difusamente o rosto fatigado da mãe, o vulto de S. José mais atrás, os olhos grandes da vaca e do burro fitando-o. Chegavam-lhe de forma obscura o murmúrio das vozes e o cheiro dos animais; tinha frio. Via também, em qualquer sítio, como num sonho, rostos disformes, punhos, gente gritando, a enorme sombra de uma cruz, e não compreendia.
     A dor, quando as mãos trémulas da mãe cortaram o cordão umbilical, o sabor do sangue dela na boca, as primeiras lágrimas, a primeira carícia, o corpo de Nossa Senhora, branco e transido, era tudo tão estranho! Um deus, sobre húmidas palhas, coberto de trapos, aprendia naquele instante coisas graves e essenciais: o frio, a dor, o mistério dos sentidos, o medo indistinto de algo que ainda não podia saber.
     O deus transformara-se num frágil e confuso ser de sangue e de músculos, tocado por um dom extraordinário e novo: o da vida. Os pulmões do Menino enchiam-se de áspero ar, os olhos de incompreensíveis imagens do mundo vasto e profundo do estábulo, e o sangue corria violentamente nas suas veias, líquido e quente, ruborizando-lhe as faces. Quando os seus pequenos dedos afloraram pela primeira vez o rosto próximo da mãe, o deus aprendeu subitamente, com uma alegria desconhecida, qualquer coisa densa e maravilhosa inacessível aos deuses.
     Por um singular milagre repetido, um homem igual aos outros homens jazia imensamente numa tosca manjedoura, no fim de uma longa viagem interior. Um homem condenado a viver uma tragédia absurda, como a de todos os outros homens, um homem solitário e ferido de brusca e humana vida, tocado pela glória extrema da transformação e da morte. Os seus olhos olhavam pela primeira vez tudo, incapazes de compreender o íntimo desígnio divino que o movia. Em algum improvável lugar, no entanto, os deuses conheciam agora algo único e absoluto sobre os homens e sobre si mesmos.
     Pelo segredo essencial da infância, da “balya”, por onde passa o caminho dos homens para o reino dos céus, passava também naquele dia distante, o caminho dos deuses para a terra dos homens. Um deus nascera entre os homens, mas um homem como todos os outros nascera igualmente entre os deuses. E enquanto no estábulo de Belém a mãe dava o peito ao menino deus, noutro estábulo, noutro sítio, Adão menino estendia os braços e chegava sem pecado aos ramos altos da árvore proibida.

JN, 25/12/1984

in Pina, Manuel António (2013). Crónica, Saudade da Literatura. Porto: Assírio & Alvim.

2 comentários:

  1. Muito obrigada. Li a crónica 3x seguidas.
    Gostei muito. Voltarei para descrever o que senti. Beijinho grande (estou com pouco tempo)

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  2. Adorei a toda a descrição do nascimento, o sentir o próprio corpo, o despertar dos sentidos e dos afectos. Na primeira leitura senti que era eu que ali estava deitada nas palhinhas, eu vivenciei o momento descrito. Senti o milagre que é a vida.
    Impressionante.
    Interessante esta dualidade. Uma boa perspectiva da importância do ser terreno.
    Obrigada pela partilha.
    Um grande beijinho.

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