Todos os anos os professores são convidados a participarem nas sessões de apresentação que as editoras fazem para darem a conhecer os manuais escolares para o ano lectivo seguinte. Numa fona incessante, muitos profissionais percorrem o país procurando mostrar à classe profissional mais desconfiada e reclamante que conheço (e na qual me insiro) que o manual escolar preparado pela sua editora é o melhor e que só trará vantagens à vida destes mouros que já não têm tempo para criar materiais dada a quantidade de burocracia que lhes cabe na sua vida profissional.
Por isso, agradeço muito às editoras o esforço em fazerem cada vez mais e melhor. De facto, percebe-se cada vez mais um trabalho insano por trás de cada projeto que apresentam. Note-se que os manuais são feitos por professores que, na maioria, está a leccionar enquanto se dedica a esta tarefa que não deve ser nada fácil. Lia há pouco no Expresso de hoje que “Nos manuais escolares, cada página obriga a muitas horas de trabalho de uma equipa de 7 ou 8 pessoas. Há um trabalho de procura de exemplos, ilustrações e conceitos que sejam os mais adequados para transmitir aos alunos aquelas matérias. Há revisões científicas. E há todo o trabalho com materiais que entregamos aos professores e que não está visível no manual.” (p. 29, entrevista a Vasco Teixeira, da Porto Editora). E de facto, se ao folhear um manual facilmente me esqueço de que aquilo não caiu do céu aos trambolhões e que, portanto, saiu do esforço de uns quantos, ao assistir às apresentações apercebo-me de que foi preciso muito esforço e muita concentração para imaginar exercícios, recursos áudio adequados a cada conteúdo, exercícios gramaticais, propostas complementares com temas que não sendo exactamente os estudados com eles mantenham alguma relação... É, de facto, um trabalho admirável e insano. E que tem consequências nos preços obscenos destes materiais practicamente incontornáveis nas nossas escolas.
Os manuais são caríssimos. Recebo as amostras gratuitamente, mas não deixo de pensar no que custou aos meus pais e a todos os outros pais por este país fora pagar oito, nove, dez ou mais manuais por ano. E quando têm mais do que um filho... Nem imagino o pesadelo! É verdade que muitas vezes o livro chega, não sendo necessários os outros materiais que com ele costumam vir (cadernos de actividades ou CD’s, entre outros), mas muitos acabam por comprar o bloco pedagógico completo, deixando dezenas de euros nas editoras. O mês de Setembro é, por isso, sinónimo de pesadelo para muitas famílias com estudantes em Portugal. Considerando que o ensino é tendencialmente gratuito, é realidade que dói e que preocupa.
Mas além disto, outra coisa salta à vista de quem percorre estas apresentações. Já se percebeu que cada editora, cada chancela faz um esforço tremendo no sentido de convencer o maior número possível de professores a considerar o projecto que apresentam o melhor de todos aqueles que vão conhecer. Contudo, como é possível aumentar ainda mais as hipóteses de ter os manuais adoptados no maior número de escolas possível? É simples: preparando mais do que um projecto por nível. Assim, os docentes vão à apresentação de uma editora e saem de lá não com uma, mas com duas caixas de manuais. E recordo-vos de que nunca vêm apenas os manuais: vêm os cadernos de actividades, as planificações, os modelos de testes e as suas correcções, vêm grelhas de avaliação, vêm CD’s, vêm guiões de leitura, vêm transcrições dos registos audio, vêm muitas outras coisas. Por isso, no fim de duas das apresentações a que já assisti nas últimas semanas recebi... sacos. Sim, as editoras entregavam sacos para que pudéssemos carregar tudo para casa. Não sei como é com as outras disciplinas, mas se todas forem como o Português, não sei como é que os meus colegas fazem para guardar tudo o que as editoras preparam para nós. Eu tento guardar tudo em caixas empilhadas na varanda e recorrer a estes materiais sempre que possível. Porém, para ser honesta, recebo tantas coisas, o excesso de informação é tanto que nunca me lembro de onde está aquilo de que preciso. Geralmente acabo por dar-me conta, tarde de mais, de que tinha tudo feito neste ou naquele projecto e que andei a fabricar sozinha determinado material. Fosse o leque de opções menor e talvez não me esquecesse de onde procurar aquilo que já sei que foi feito por outro. Pode parecer estranho a quem não vive isto, mas é mesmo difícil (especialmente quando num ano se lecciona a diferentes níveis de ensino) saber onde está tudo, lembrarmo-nos daquilo que vimos nas apresentações de manuais e que pensámos, na altura, “ora aqui está uma coisa boa para utilizar”. Entretanto passa o tempo, o ritmo do trabalho aumenta e cai no esquecimento este ou aquele pormenor que parecia tão bom. No fim já nem nos lembramos do projecto em que se encontrava.
Portanto, não sei dizer se este excesso de informação é bom ou mau. Por um lado, os docentes agradecem de mãos postas o facto de alguém lhes fazer tanta papa. Mais cedo ou mais tarde acabamos por recorrer aos muitos materiais que, não sendo manuais, fazem muita falta para um ensino de qualidade (especialmente quando o tempo para grandes aventuras em sala de aula é cada vez menor). Mas, por outro lado, não sei se não nos sentimos atropelados com tanta oferta, com tanto fogo de artifício, com tanto papel, com projectos que até concorrem entre si dentro da mesma editora. Como se não bastasse, em ano de adopção temos de avaliar estes manuais todos (mais uma burocracia) e, assim, além de carregarmos para casa quilos e quilos de papel, ainda temos de os olhar com bastante detalhe para depois os classificarmos com justiça. Sobre isto tudo que hoje vivemos enquanto professores, sobre esta dicotomia entre o que nos facilita a vida, mas que ao mesmo tempo nos leva a ter mais trabalho, só me ocorre a frase que inicia o romance História de Duas Cidades, de Charles Dickens: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos."
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