terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Do pedantismo

«O que marca o valor da cultura é o seu efeito sobre o carácter. De nada vale, se lhe não dá nobreza e força. Deve servir para a vida. O seu objectivo não é a beleza, mas o bem. Demasiadas vezes, como sabemos, a cultura dá origem à arrogância. Quem nunca viu o sorriso irónico do letrado ao corrigir uma citação errada, ou o aspecto magoado do conhecedor quando alguém elogia uma pintura que ele não aprova? Não há maior mérito em ter lido um milhar de livros do que em ter lavrado um milhar de campos. Não é maior mérito o ser capaz de chapar num quadro uma descrição correcta do que o ser capaz de descobrir o defeito de um automóvel avariado. Em cada um dos casos, trata-se de conhecimentos especializados. O banqueiro tem os seus conhecimentos, também; e como ele o artífice. É um preconceito tolo dos intelectuais o de que só os seus conhecimentos contam. A Verdade, o Bem e o Belo não são a recompensa dos que frequentaram escolas caras, roeram bibliotecas, frequentaram museus. O artista não tem desculpa quando se serve dos outros com condescendência. É louco se pensa que os seus conhecimentos são mais importantes do que os dos outros; imbecil, se não pode encontrar-se com eles de igual para igual.»

Somerset Maugham
 
 
Esta semana assisti em choque à discussão mais idiota do mundo. Tinha como ponto de partida um errozinho sintáctico numa frase em latim pronunciada pelo Papa quando renunciou ao cargo. O fim do mundo: o senhor, segundo percebi, fez uso de um caso errado a seguir a determinada preposição. Pânico. E agora? Já não o podemos mandar embora porque ele já renunciou, por isso só nos sobra a encomenda de um auto-de-fé para o nosso Bento XVI e a folha de papel em que tal erro viu a luz.
 
Ao ter conhecimento desta questão, não pude deixar de pensar no pedantismo que por vezes, e frequentemente «sem intenção», podemos exibir. É que há momentos em que não estamos, simplesmente, a ter discussões interessantes e enriquecedoras: estamos apenas a exibir gratuitamente o nosso «superior» conhecimento de matérias que, francamente, podem não interessar a ninguém. Atenção que não estou a dizer que o latim não interessa. Nada disso. Gosto demasiado da língua portuguesa para dizer que a que lhe deu origem não deve ser estudada ou respeitada. Simplesmente pareceu-me discussão vazia de utilidade e de sentido. Uau, o Papa enganou-se num discurso que ficará para a História por muitas razões que não o latim e um simples mortal deu pelo erro: rejubilemos.
 
Resolvi partilhar aqui este excerto de Somerset Maugham que, por um curioso acaso, li esta semana. Deixo-o porque me parece ilustrar na perfeição o que quero dizer. Muitas vezes assumimos que os nossos saberes valem mais do que todos os outros, que aquela preposição mal utilizada por lapso e uma vez sem exemplo passa um atestado de incompetência a alguém, que o facto de já termos lido este mundo e o outro nos torna imensamente melhores do que aqueles que menos leram. Contra mim falo que dias há em que não deixo de me chocar pelo desinteresse de alguns pelo que de melhor as letras já produziram e, sobre isso, teço comentários pouco simpáticos. Porém, também defendo que há quem tenha um desinteresse tal por todo e qualquer saber que é impossível não comentar, não reflectir sobre essa falta de curiosidade e não acabar a censurá-la. Agora, não sejamos mais papistas que o papa: o facto de sabermos o que muitos desconhecem não nos devia transformar em seres humanos mesquinhos e pedantes que buscam erros em tudo para depois mostrarmos ao mundo o nosso extraordinário conhecimento. Corrigir e explicar um erro é útil e creio que não ofende (embora a minha avó achasse que corrigir um adulto ficasse sempre mal). Assim como reflectir sobre a necessidade de se conhecerem determinados aspectos como a nossa língua, os clássicos da literatura, boa música, os melhores filmes, boa pintura e por aí fora. Aconselhar, sugerir, dar a conhecer, defender pontos de vista, expressar a nossa opinião sobre alguma coisa (desde que não nos armemos em génios imbatíveis) só pode ser bom. Porém, fazer alarido por coisinhas minúsculas e dar espectáculo sobre ela já é infantilidade.
 
Portanto o Papa esqueceu-se do ablativo. So what?

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