sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Peculiaridades de um leitor XIV

Nos dias em que estive em repouso devido à pomposa cólica renal que se fez sentir no final da semana passada, caiu-me no colo um tema curioso que tem que ver com hábitos de leitura, particularmente aqueles que temos quando ficamos doentes. 

Este blogue nasceu em 2011, mesmo no final de um período em que estive em casa devido à varicela que apanhei num casamento (sim, uma mãe genial achou que levar o filho em fase de contágio para um casamento era o melhor a fazer, mas enfim). Nesses dez dias em que estive trancada em casa para não contagiar mais ninguém (embora a minha irmã não tenha escapado), li muito. A leitura de que me recordo imediatamente é Atribulações de um Chinês na China, de Júlio Verne. Foram horas e horas de leitura para despachar numa noite ou duas aquelas aventuras tão típicas na escrita do autor. Era, ao mesmo tempo, um livro divertido, leve e envolvente, muito apropriado para uma altura em que ora se lê, ora se dorme e em que a concentração pode não estar no seu melhor. Por isso mesmo, perto do final da minha querida varicela, peguei num portento que se tornou num dos meus livros favoritos: David Copperfield. Aliás, uma das primeiras quixotadas que escrevi foi, precisamente, sobre esse romance de Dickens. Já estava melhor, mais concentrada, mais capaz de me lançar a largos voos e aquelas centenas de páginas foram percorridas a grande velocidade.

Mas desta vez, com as dores da cólica renal e, sobretudo, as imensas náuseas que ela causava, a vontade de ler foi-se. Consegui ver séries e outros programas, mas não consegui ler grande coisa. Mesmo andando com o Tennessee Williams debaixo do braço (já agora, uma vénia para ele que é absolutamente brilhante e, talvez, a minha melhor descoberta de 2017), só pensar em ler era causa de enjoo. E foi assim que me caiu no colo o tal tema desta quixotada e que é mais uma peculiaridade dos leitores.

Falando com uma Professora universitária de quem gosto muito e perguntando-me ela como estava a minha saúde, disse-lhe como me sentia e, inclusivamente, que não conseguia ler nada há vários dias, mesmo passando o tempo aninhada no sofá ou na cama. Disse-lhe que não querer ler era muito invulgar em mim, mas que mostrava bem o estado em que estava. A isto ela respondeu com alguma graça que sempre que sentia que vinha lá uma gripe, pegava invariavelmente num Eça que a acompanhava até ao final da doença. Na última vez que tal aconteceu leu A Capital.

Fiquei a pensar nisso, naquilo que entendi como «leituras de conforto»: naqueles livros que sabemos que não nos vão falhar, que não vamos ficar desapontados com eles. Para esta Professora, a leitura que nunca a deixa mal e que pode acompanhá-la num período de maior fragilidade passa pelos vários livros de Eça de Queirós. Já eu não tenho uma leitura de conforto propriamente dita, embora tenha percebido, depois de pensar no assunto, que normalmente escolho livros infanto-juvenis ou livros mais humorísticos. Não foi afinal à toa que, no segundo ou terceiro dia de dores, peguei no quinto volume do Manolito Gafotas. Para a Professora, Eça tem aquilo de que precisa quando se sente pior; para mim o que me importa é que o texto seja leve, engraçado e que não exija muito de mim. Ainda que as peças de Tennessee Williams se leiam muito bem e sejam muito fluídas, os temas sérios nelas abordados eram demasiado para um cérebro mais concentrado nas dores e na falta de posição para estar do que propriamente naquilo que estava a ler. 

Portanto, acredito que cada leitor tenha as suas preferências quando está doente. Talvez uns prefiram abandonar os livros e optar pelos periódicos; outros largam todo o material de leitura e entregam-se à televisão e às séries e filmes; outros ainda optam por um determinado autor ou género; alguns pegarão em BD e infanto-juvenil e outros poderão manter-se como sempre e ler o que apetecer sem pensar mais no assunto. A verdade, é que mesmo sem darmos muita conta disso, os livros que nos acompanham combinam muitas vezes com o modo como nos sentimos: se mais tristes, tendemos a fugir de dramas; se estamos felizes, já podemos ler um dramalhão; se aborrecidos, venham as aventuras; se cansados, a leveza de alguns livros infanto-juvenis ou de algumas bandas desenhadas ajuda imenso. Cada leitor é um mundo e agirá de acordo com o que sente. Chegados à décima quarta «Peculiaridades de um leitor» creio que já ficou bem claro isso mesmo: que são peculiaridades e não regras. Alguns de nós temos uma ou outra esquisitice, outros temos muitas das que já referi nesta onda de quixotadas. Com isto dos «livros de conforto» passa-se o mesmo, mas uma coisa é certa: só os leitores, só os amantes dos livros param para pensar nisto. E isso torna-nos peculiares e peculiarmente felizes.

9 comentários:

  1. :)
    Os livros que lemos em determinada altura estão sempre ligados à nossa disposição, sem dúvida.

    Comigo varia, se estiver só com uma constipação leve (mas aborrecida) leio o que é normal ler.
    Caso esteja com gripe e febre pego sobretudo em poesia e deixo a ficção.
    Com dores e mal-estar recorro imediatamente (caso não tenha o cérebro em papa) a leituras que me aconchegam e confortam. Que me façam rir ou que me façam relativizar a situação. E também que me recordem períodos da infância em que foram lidos.

    Em regra: "O Jardim Secreto", "Meu Pé de Laranja Lima", "Aventuras de João Sem Medo", "A Pequena
    Fadette", "Uma Aventura..." qualquer um da Condessa de Ségur, gibis da Mónica. Para sentir o aconchego e o aroma da infância.

    Wodehouse, Calvin and Hobbes(o filósofo mais pequeno e genial que o mundo já viu!), qualquer um de Tintin. Para rir, claro.

    "Memórias de Vida e Luz - Autobiografia de Um Herói Cego", de Jacques Lusseyran (esta é uma tradução de português do Brasil. http://www.deficienciavisual.pt/r-Jacques_Lusseyran.htm - caso não conheças o nome e te interesse), As cartas e ou os diários de Etty Hillesum e "Journal of a Disappointed Man", de Barbellion. Todos, obviamente, para relativizar a minha situação.

    Embora não notemos, é um esforço extraordinário que fazemos para ler.
    Ver séries ou filmes enquanto nos agarramos a um animal que tudo faz por nós é igualmente válido e proveitoso :)

    Que já estejas (quase) recuperada.
    Beijinho

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    1. ADORO Calvin & Hobbes! Tenho os livros todos e ainda recordo de cor alguns dos poemas que o Calvin fez para o Hobbes. Essa é a melhor leitura para descomprimir. E a ironia da vida: tenho um sobrinho que é a reencarnação do Calvin. Imagina...

      Ler dá trabalho, mesmo dando muito prazer também. Por isso é que temos de ajustar a leitura ao nosso próprio estado. Acabamos por fazê-lo mesmo que não pensamos muito no assunto.

      Por falar em animais que tudo fazem por nós: estes dois pequenos patifes têm sido óptimas companhias. Ontem estava gelada e deitaram-se coladinhos a mim, um de cada lado. Foi uma noite bastante quentinha. Foi o presente de aniversário deles. :)

      Sim, estou melhor. A ver o que acontece quando acabar a medicação. Beijinhos.

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  2. Comfort reading :) de facto há coisas que sabe mesmo bem ler quando se está mais em baixo... tenho uma cirurgia para algures no início de 2018 e estou a pensar no assunto (até porque, pior, vou ser obrigada a usar lentes de contacto durante um mês).

    Espero que estejas melhor! Parabéns atrasados, beijinhos :)

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    1. É bastante curioso como há livros para todas as ocasiões e estados de ânimo. Também há quem não faça esta triagem e leia independentemente do estado de saúde ou do humor do momento, mas a muitos outros leitores fazem, mesmo que de forma inconsciente, uma distinção entre uns livros e os outros. Um livro que não se adeque ao momento pode causar uma má experiência de leitura que talvez nem acontecesse se o mesmo livro fosse lido noutro momento mais propício. Isto dos livros e da leitura é um mundo.

      Obrigada. Estou melhor, sim. Agora tenho de ir bebendo o famoso chá “quebra pedra”, como aconselhou o médico.

      Beijinhos. :)

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  3. Esqueci-me da Mafalda. Imperdoável!

    O cérebro interessa-me bastante.
    Lermos uma só palavra é possível porque os nossos olhos traduzem a imagem de cada letra em centenas de milhares de sinais eléctricos que, em linha quase recta, "escorregam" até à parte da massa resguardada na caixa do crânio. Daí são disparados outros milhares de mensagens que se dispersam até encontrarem uma área capaz de reconhecer as letras e justapor palavras. Posteriormente, o significado da frase é encontrado: escondido algures na memória.
    Os neurónios fazem milhentas ligações. Claro que há ainda a parte da reflexão, da ligação com acontecimentos / lembranças/ leituras passadas e etc.
    Por isto disse anteriormente que ler é um grande esforço. Em modo sadio ou convalescente.

    Mas o mais importante é:
    Que o teu sobrinho se mantenha muito, muito tempo como é! :DD
    Aposto que és uma tia embevecida. E cheia de razão :)

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    1. Não sei se a minha irmã não preferia que o «Calvin» parasse de lhe pintar as paredes de casa de vez em quando.

      Sim, ler implica um esforço tremendo se pensarmos nisso como expuseste. Por isso é normal que em períodos em que estamos mais frágeis até ler seja um fardo. Por vezes parar também faz bem. Durante a cólica renal fartei-me de olhar para o tecto porque ler me aumentava as náuseas. Dá para pensares na vida, ainda que ver séries também seja uma hipótese. Mas ler era um esforço impossível. Lá consegui umas páginas de Manolito Gafotas, mas a uma velocidade que nem conto a ninguém.

      E de Asterix, não gostas? Eu adoro. E ainda me falta o mais recente volume. A ver se trato disso. Rio-me sempre imenso com os incríveis gauleses. :)

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    2. Adoro Astérix! Seria impensável com o pai que tenho :)

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  4. Um tema interessante.
    Não leio nada porque acho sempre que vou morrer.

    Gostava (se não se importa) de agradecer à Marta a generosidade. Acho mesmo que é preciso ser uma pessoa em condições (não se vangloria e escreve de forma natural) para falar de tantos livros que leu e com tanto desprendimento. Gosto da simplicidade.
    Agradeço a ambas

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    1. De facto, a Marta já leu este mundo e o outro e é sempre agradável conhecer as suas leituras e opiniões porque, mais do que ler muito, leu muitas coisas de grande qualidade. Leitores que devoram livros ainda vão existindo alguns, mas leitores que leiam muito e bom já são mais raros. Por isso, junto-me a si no agradecimento a uma leitora que enriquece o blogue. E, claro, agradeço a todos os que por aqui passam e deixam um bocadinho dos seus dias, em formato de opinião, de sugestão ou simplesmente de passagem. É para isso que o Quixotadas existe. :)

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