sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Peculiaridades de um leitor XIII


Não nascemos leitores: fazemo-nos leitores. Ao poucos, muito lentamente nuns casos, mais rapidamente noutros, habituamo-nos às letras, aos livros e quando damos conta estes fazem parte inseparável dos nossos dias. Mas para muitos de nós, mais do que os livros que a escola pudesse levar-nos a ler, o que nos fez leitores foi o exemplo daqueles que nos são mais queridos.

Sempre vi a minha irmã e a minha mãe a ler jornais e livros. O meu pai ainda hoje lê um ou dois jornais por dia (podem não ser os meus favoritos, mas lê). Acho que mesmo tendo poucos livros enquanto pequenita, sempre convivi com eles como algo que faz parte da nossa vida. Com o tempo fui lendo mais e mais, passei pelos livros parvos da adolescência e fui trilhando o meu caminho, descobrindo aquilo que resultava para mim e o que não valia a pena ler. Quando dei conta, estava a escolher uma Licenciatura na qual pudesse ler muito e dos mais variados tipos. Mais tarde, para muitos dos meus alunos, eu era um bicho raro e anacrónico, pois era a única docente que trazia sempre um livro na mala e que falava frequentemente do que lia. Para alguns eu vivia algures no século XIX, bem antes das tecnologias que lhes ocupavam os dias. Infelizmente, muitos daqueles miúdos não tinham leitores em casa que lhes dessem o exemplo. Tinham acesso a muitos mais livros do que eu tive em criança, mas poucos adultos que lhes mostrassem que ler é bom em qualquer idade. 

Por outro lado, tive alguns (poucos) casos de alunos que tinham a sorte de ter pais leitores que lhes transmitiram o gosto e os incentivavam a ler mais e mais. Alguns tinham listas de livros que queriam comprar com o dinheiro que recebessem no Natal. Era delicioso vê-los agarrados a livros, orgulhosos por lerem centenas de páginas, livros cada vez maiores e mais complexos. Os pais lá lhes alimentavam a paixão e, em alguns casos, tinham de fazê-lo em alta velocidade, tal era a rapidez com que devoravam as páginas impressas. Esses também eram bichos raros para os colegas, mesmo partilhando outros gostos com eles como a paixão pelas tecnologias, pelos melhores telemóveis e tablets. Eram do mesmo século que eles, mas tinham aquele gosto estranho que envolvia livros grandes e chatos. Já eu era mesmo qualquer coisa saída de uma máquina do tempo directamente para a sala de aula.

A imagem que deixei no início deste texto (e cuja fonte não consigo citar porque não a encontro) ilustra bem a falta de exemplo e de noção de que é preciso fazer primeiro para que os miúdos aprendam a fazer depois. Pais e professores, irmãos mais velhos e outras pessoas importantes na vida das crianças são modelos que muitas vezes tentam imitar. Se no início o que queremos é fazer o que eles fazem, tempos depois já queremos ler porque gostamos, porque descobrimos que é divertido. Comigo foi assim e com muitas outras pessoas que conheço também. Mas desdenhar dos livros  que os filhos liam (como vi encarregadas de educação fazerem na frente dos seus educandos) é meio caminho andado para não se fazer um leitor.

Note-se que nisto não há nenhuma receita infalível. Há miúdos com pais que lêem imenso e que se recusam a «perder» tempo a ler. Também há os que gostam de ler sem que alguma vez tenham visto alguém lá em casa fazê-lo. Porém, sabe-se que o exemplo daqueles que nos importam é fundamental em vários níveis do desenvolvimento e a leitura não é excepção.

A minha mãe conta muitas vezes uma história fabulosa sobre ignorância que, claro, gerou ignorância. Uma tia minha, certo dia e a meio de uma conversa telefónica, dizia com um tom muito revoltado à minha mãe que alguém tinha oferecido um livro ao filho dela. Um livro!!! Falava como se fosse o mesmo que levar a lepra para dentro do seu lar. A minha mãe perguntou qual era o mal de ele ter recebido um livro e a outra lá armou uma desculpa esfarrapada qualquer que passava pelo facto de o meu primo, um ano mais velho do que eu, não se interessar por livros. Bom, é óbvio que com aquele choque todo por causa de um livro oferecido pelo Natal também não passaria a interessar-se mais. Tudo o que não fosse um espalhafatoso brinquedo era pouco para o seu menino. Um livro, dois bocados de cartão com folhas no meio era, então, o pior que se lhe podia oferecer. Nem sei quem gostaria menos de tal presente: se a mãe ou o filho.

Enfim, nisto como em muitas outras coisas, não podemos fabricar o que queremos com peças que para ali tenhamos. Podemos dar o exemplo e ninguém querer segui-lo. No entanto, estando provado que há mais hipóteses de que famílias de leitores venham a gerar leitores, qual é a dúvida? Se o meu filho só aceder a smartphones e nunca a livros, não poderei esperar um milagre. Se passar anos de vida sem sonhar que nos livros se contam histórias extraordinárias, provavelmente continuará a sua vida sem que nenhum lhe provoque a curiosidade. Se um miúdo assiste frequentemente aos discursos da mãe diminuindo a importância e a utilidade dos livros, é provavel que ele próprio acabe por pensar que aquilo não vale a pena, pois se a mãe o diz... 

Como disse no início, não nascemos leitores. Vamo-nos construindo aos poucos enquanto tal. E se os olhos de um leitor em formação observam os livros que o rodeiam, também prestam muita atenção aos outros leitores para que reforcem positivamente tal actividade e lhes indiquem os melhores caminhos a seguir pelo meio de tantas páginas possíveis.

4 comentários:

  1. É mesmo hábito que quero incutir ao meu filho... é uma maravilha adorar ler!

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  2. Sim, tornamo-nos leitores. Concordo.
    E os exemplos são fulcrais, mas não nem sempre são suficientes para alimentar o bichinho.

    Tenho um amigo com pais que não lêem nem nunca leram. É desde sempre um ávido leitor. Passava tardes e dias na casa dos meus pais a ler comigo. No entanto, não tinha livros em casa. (Temos imensas fotos que nos tiraram, sem sabermos, a ler. Sorrio sempre que as vejo. Cada um de nós tem uma foto dessas em casa :))

    Os pais pais podem não ler, mas nada os impede de comprar livros aos filhos. Como podem não saber andar de bicicleta mas hão-de comprar uma aos filhos, exemplo parvo mas pronto.

    Passei e passo tantos momentos de deleite a ler.
    "O Conde de Monte Cristo", "As Viagens de Gulliver", "O Fantasma da Ópera", "A Cabana do Pai Tomás", "A Volta ao Mundo em 80 Dias" e muitos outros fizeram parte da minha infância.

    Depois aos onze anos li "Papillon" e virei-me para leituras mais adultas e mais "sérias".
    Sem me achar superior nem nada que se pareça, sinto genuína "pena" de quem não sente prazer em ler, que nunca sentiu a sensação de se perder numa história.

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    1. Tenho 46 anos e nunca li nenhum livro desses. Vou á biblioteca ver se encontro.

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  3. O meu pai nunca leu um livro na vida - mas a minha mãe é sócia do círculo de leitores há mais de 30 anos :)

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