Já acabei de ler este livro há uns dias, mas depois destas quatro peças de Tennessee Williams fiquei com a sensação de que é um autor que, além de se ler com muitíssimo gosto, deixa tanto em que pensar que são precisos alguns dias para digerir o que lemos.
Falei-vos, há algum tempo, da primeira peça deste volume: Gata em Telhado de Zinco Quente. Essa foi, provavelmente, a peça que mais me tocou. Nunca vi uma encenação deste texto, mas achei tudo tão plausível, tão verdadeiro. Há ali situações que facilmente encontramos na vida de todos os dias: a entrega a vícios como forma de desistência; os abutres que só esperam a hora de poderem apropriar-se do que a outros pertence e que usam a bajulação como forma de conseguir o que querem; aqueles que se tentam ajustar à realidade, nem que isso os mantenha num equilíbrio tão instável e desagradável como será o zinco quente sob as patas de uma gata.
Ainda que as duas peças que se lhe seguem também sejam muito boas, não me senti tão tocada por elas. Subitamente, no Verão Passado é, ainda assim, um texto em que há uma linha muito fina entre a loucura e a sanidade. Tão ténue é a linha que chegamos ao fim do texto sem saber quem diz a verdade, pois o que nos é contado é demasiado bizarro para que nisso acreditemos sem antes nos questionarmos. A morte de um filho, aquilo que se descreve como a dor maior, é o ponto de partida para um texto em que as personagens têm de confrontar-se com a verdade, com aquilo que pode ser a verdade e com o que não querem que seja a verdade. Também aqui encontramos os tais abutres que desejam subir na vida à custa de perdas alheias, algo que me pareceu ser recorrente nas quatro peças que compõem este volume.
Verão e Fumo é um texto que nos apresenta uma personagem com uma sexualidade florescente que parece aperceber-se demasiado tarde dessa mudança, deixando passar aquilo que gostaria de ter e que esteve sempre ao seu alcance. Parece ser a história de alguém que assume tais responsabilidades ao longo da vida e desde uma idade tão precoce que depois deixa pelo caminho uma parte de si, perdendo um comboio que não poderá voltar a apanhar.
A última peça deste livro tem um título para lá de conhecido: Um Eléctrico Chamado Desejo. Muitos já a terão visto no teatro ou mesmo alguma das suas adaptações cinematográficas (e algumas meninas recordarão o Marlon Brando em t-shirt branca). A peça coloca em rota de colisão duas realidades muito distintas: o fim de uma sociedade aristocrática e a emergência da modernidade, daquilo que substituiria o estado de coisas anterior. A realidade em que as grandes famílias e as suas fortunas moviam a América é representada por Blanche DuBois; aquela em que a força alcança aquilo a que antes se chegava pelo dinheiro surge-nos com Stanley, o cunhado de Blanche. Estas duas forças antagónicas vão, desde o início do texto, enfrentar-se, medindo forças num crescendo de tensão que culmina num final terrível em que um aniquila o outro física e psicologicamente. No fundo, o que ali está são duas versões do mundo: a que foi ficando no passado e a que o futuro fez presente. Temos de um lado a «princesinha» que se viu desapossada de tudo e o bruto que tem perspectivas de futuro naquela nova América da primeira metade do século XX. É um combate que só um pode vencer e não é difícil imaginar quem será, já que o tempo não pode voltar para trás e regressar a uma ordem que já estava praticamente ultrapassada. Aliás, o «sonho americano» nem existiria se essa tal realidade aristocrática, a das grandes famílias com grandes plantações e muitos seres humanos a servi-la, não tivesse desaparecido. O problema (e é o que nem sempre percebíamos nas aulas de História) é que as transições não costumam ser fáceis e se tudo sabe bem a quem sobe na vida, tudo sabe muito mal a quem desce e se vê perder uma série de coisas que dava como certas. Blanche perdeu tudo, mas não sabe viver sem nada e por isso cola-se como uma lapa a todos os que possam ajudá-la a continuar a viver. Além disso, pretende continuar a viver numa fantasia muito desajustada ao meio onde tentou inserir-se. Os vestidos demasiado pomposos, as tiaras e outras jóias, o modo como esconde sempre a sua idade para poder continuar a viver presa ao passado não se enquadram na nova América e Stanley faz questão de a confrontar com a falta de lugar para ela nesse novo mundo em formação. É, por tudo isto, uma peça marcante. Tal como todas as outras referidas, lê-se muitíssimo bem, mas precisa de ser trabalhada dentro de nós porque somos confrontados com aspectos em que poderíamos nunca ter pensado antes. Como disse atrás, as aulas de História sempre nos mostraram um mundo em mudança, mas tendemos a esquecer-nos de que na voragem da mudança estão seres humanos que com ela sofrem ou que dela tiram dividendos.
Tennessee Williams foi uma das melhores surpresas que os livros me reservaram este ano. Não lia textos dramáticos há bastante tempo (excepção feita aos que fazem parte do Programa de Português do Básico e Secundário) e já quase nem me lembrava do modo fabuloso como os dramaturgos talentosos conseguem destacar tantos aspectos importantes da nossa existência e deixar-nos incomodados com eles. Senti com Tennessee Williams aquilo que em 2003 senti quando li Shakespeare pela primeira vez: que estava perante alguém que conhecia os problemas humanos e que sabia mostrá-los com uma mestria difícil de suplantar. Embora um tenha escrito nos séculos XVI/XVII e outro no século XX, ambos conseguiram olhar para a realidade, olhar para o ser humano, ver o que o move, o que o comove e o que o destrói, fazendo disso um espectáculo que deixa o leitor/espectador com a obrigação de analisar tudo profundamente. Não se fica indiferente perante as suas histórias mais poderosas. Há autores assim, capazes de ver dentro daquilo que somos, dos defeitos e virtudes que temos em comum e que, seja em que século for, interferem profundamente na nossa vida. Assim são os bons escritores.
Tenho várias peças de Williams mas até hoje só li os contos.
ResponderEliminarGostei muito da tua leitura actual. Aliás, gosto muito de Eliot.
Uau. Estou completamente vendida! Como já disse no outro post que fizeste sobre o livro/autor, tenho curiosidade há anos, mas assim... quando finalmente quebrar a minha não-compra de livros, irá acontecer.
ResponderEliminarPS: viste que a amazon espanhola agora tem portes grátis para portugal?
ResponderEliminar