Embora eu não conheça os leitores do blogue, conheço os blogues de alguns e há duas coisas que têm normalmente em comum: gostam de ler e de viajar. Portanto parece que a edição de Agosto do Courrier Internacional junta ambas as coisas: a leitura e a viagem.
Já há algum tempo escrevi uma quixotada sobre livros de viagens e há poucos dias voltaram a gerar agradável conversa nas caixas de comentários do blogue. É um género de que nem toda a gente gosta. Em parte, creio, pelo facto de ser muito descritivo. É normal: por muito que o autor comente alguns acontecimentos ou passe algum tempo a narrá-los, terá inevitavelmente de escrever momentos de descrição para poder dar a ver ao leitor aquilo que ele encontrou nas suas viagens. E se alguns vêm acompanhados de fotografias que sempre ajudam a entender melhor as palavras do autor, outros nem isso trazem. São, por isso, livros exigentes. É necessária concentração, capacidade de abstracção, imaginação. Muitas vezes faz mais falta um mapa do que as próprias fotografias que frequentemente os acompanham. Aconteceu-me há pouco tempo ler um livro de viagens que não o tinha e cujo itinerário percorria o globo de norte a sul. Os países até nem eram o maior dos problemas. A dificuldade estava mesmo na quantidade de cidades atravessadas pelo viajante, muitas delas pequenas e pouco conhecidas.
Contudo, se lhes dedicarmos tempo, revelam-se livros maravilhosos. Só o facto de descreverem diferentes modos de viajar, desde os projectos mais simples até às iniciativas mais loucas, já os torna ricos e interessantes. Tenho livros cujas longas viagens foram feitas apenas de comboio, atravessando continentes inteiros. Outros há em que a viagem decorre em cargueiros. Alguns recorrem a motas para percorrer África de norte a sul, outros preferem fazê-lo de bicicleta. Muitos recusam-se a usar o avião. Outros partem com um orçamento tão mínimo que começamos o livro a perguntar-nos como não morreram de fome. Alguns autores preferem traçar rotas famosas como a conhecida viagem de circum-navegação. Outros ainda seguem os passos de escritores como Hemingway ou Fernão Mendes Pinto. Existem livros de viagens que já aconteceram há muito tempo e cujas paisagens descritas provavelmente já nem encontraremos. Enfim, existem para todos os gostos. Com jeito dava para termos o globo inteiro representado em livros de viagens pousados na nossa estante.
Para mim, os livros de Paul Theroux são absolutamente encantadores já que juntam a viagem a referências culturais e a uma escrita muitas vezes poética e belíssima. Também gosto dos do eterno Monty Python, Michael Palin, embora sejam sínteses dos programas feitos para a BBC e, portanto, mais apressados do que os de Paul Theroux. Bill Bryson também tem alguns, embora não sejam os meus favoritos, pois escolhe geralmente um tema relativo ao povo que visita e é em torno desse tema que se desenrola a viagem. Como vos disse, há para todos os gostos e podem sempre ler um. Se não vos agradar o género, abandonem-no. Eu gosto porque sei que há experiências que não me arriscaria a ter (sou pouco aventureira) e porque gosto de ver outros pontos de vista tanto sobre lugares onde nunca fui como sobre viagens que também já fiz. Gosto de reconhecer numa descrição alguma coisa que já vi e perceber que há muitos olhares possíveis sobre a mesma coisa.
Viajar é hoje algo que fazemos com relativa facilidade. Felizmente, a viagem através dos livros não impede a viagem física. Pode influenciá-la, pode proporcionar novas ideias, mas jamais se excluirão. Não conheço ninguém que diga «Não vou a Paris porque li um livro sobre essa cidade!». Estes livros são, sim, uma janela para o mundo e para várias formas de o ver. Valerão sempre a pena, mesmo que as viagens estejam cada vez mais baratas e a outra ponta do planeta cada vez mais ao nosso alcance.
Mas enquanto começam e não começam a ler um livrinho destes, têm sempre este número do Courrier Internacional cujo artigo de destaque partilha o mesmo nome que um livro de Alain de Botton. Viajar já não é só ir do ponto A ao ponto B para fazer qualquer coisa. Já é muitas vezes uma arte que exige conhecimento, muita planificação e uma boa componente de sonho e de vontade.
E como a partir de tudo o que aqui foi dito se prova que viagem e escrita sempre deram muito bem as mãos, deixo-vos com a famosíssima abertura de um dos nossos mais conhecidos romances, uma verdadeira apologia à viagem, por mais pequena e próxima que seja, e à crónica da mesma. Porque se ler e viajar ainda não são exactamente o mesmo, mas apenas duas coisas que podem complementar-se na perfeição, viajar sem ficar com um registo do que se viu hoje nem sequer é concebível. Actualmente, nós temos as fotografias: o autor tinha a pena e usou-a com grande mestria.
«Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo - entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crónica.»
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, (Capítulo I)
Como te disse no outro post, nunca li literatura de viagem - mas é verdade, duvido que alguém que leu um livro sobre Paris diga que já não precisa de ir (a não ser que a história seja de tal modo horrível que o leitor se sinta assim inclinado, suponho - se eu ler memórias de guerra, sei lá, do Ruanda, se calhar fico com pouca vontade de lá ir).
ResponderEliminarTristemente, ainda não li esse do Almeida Garrett, mas espero pôr as mãos num exemplar em breve.
PS - o meu namorado é leitor aficionado do Courrier Internacional (mas ainda não pegou neste). Todos os meses eles escrevem sobre uma viagem, e essa parte interessa-me sempre, mas uma edição só de viagens entusiasma-me muito!
Eu adoro o Courrier Internacional. Só não compro quando, depois de ver o índice, percebo que nada, mas nada daquilo me interessa lá muito. Foram poucas as vezes em que isso aconteceu.
EliminarTodos os meses há um tema mais alargado. No mês passado foi sobre as línguas como passaporte para o futuro, e este mês o da arte de viajar. Não ocupam toda a revista: apenas tem direito a duas ou três reportagens mais alongadas. Mas vale muito a pena. Para mim é das melhores revistas que por cá são publicadas.
Boa leitura!
Nós compramos sempre. Em Maio, porque o sítio habitual de compra deixou de ter (FNAC do Vasco da Gama), a coisa desregulou-se um pouco e não encontrámos. Em Junho encontrei noutra papelaria e, azar dos azares - tinham enviado os de Maio de volta nessa manhã. Contactei a redacção e foram uns queridos - ofereceram-nos o exemplar, desde que se fosse buscar em mãos a Paço de Arcos :)
EliminarCostumo comprar sempre uma revista mais "complexa" no aeroporto, quando tenho de encarar um voo de dimensões consideráveis. Desta vez serão 14h. Aqui está uma bela ideia :) Obrigada!
ResponderEliminarUi... Compra mais outra porque 14 horas são muitas horas!
EliminarSão, mas não consigo ler só revistas. Também levo o livro. O avião tem "bué de" filmes. E ainda preciso de tempo para fazer o meu spa aéreo, bezuntar-me de cremes, colocar a máscara, "apagar a luz" e dormir, nem que seja no chão. ahahah - se isto fosse assim tudo fácil e em mais de meio metro quadrado, 14 horas até parecia pouco.
EliminarRealmente, 14 horas dá para tudo e mais alguma coisa. Nunca fiz uma viagem assim tão longa. Nem lá perto. Mas imagino que ao fim de duas já estivesse louca.
EliminarPortanto, fazes daquilo uma espécie de mini-apartamento? Parece-me bem. Besuntar cremes é tão chato que ao menos ali não há a sensação de perda de tempo.
Exacto. A minha mãe no ano passado só se ria com as tralhas que eu ia tirando do saco. Mas depois já me estava a pedir o hidratante das mãos e dos lábios e uma almofada para o pescoço e mais isto e aquilo. Há pessoal que leva pijama/fato de treino para trocar de roupa para dormir, eu ainda não cheguei a esse extremo (tento ir com roupa que já me facilite a coisa) mas besuntar-me é boa ideia, para além de tempo de sobra é dos piores ambientes que conheço para ressecar tudo e mais alguma coisa, eu fico sempre cheia de cieiro.
EliminarAs primeiras viagens longas que fiz foram terríveis. Viajar mais de 5 horas sentadinha e bem comportada como se vai daqui para Londres ou Paris é uma tortura, com o tempo comecei a perder a vergonha e a fazer de tudo para conseguir relaxar e descansar. Chego outra ao destino final! :)