terça-feira, 8 de outubro de 2013

Precisa-se de gramática

Ontem acabei de ler o Expresso (vá lá, o desta semana: estou a melhorar capacidades) e deparei-me com um texto de José Cutileiro que me deixou aterrorizada. Não costumo reparar nos textos dele, mas o do jornal que saiu neste sábado era tão, digamos, "vistoso", que foi impossível não o ler e não pensar na importância de saber fazer frases curtas.
 
O texto, na página trinta e seis, falava sobre Marcella Hazan, uma senhora nascida em Itália, que fundou a Escola de Cozinha Italiana Clássica e que, infelizmente, faleceu este ano. O nome do espaço em que este texto se insere é adequado, «In Memoriam», ou seja, trata-se de um obituário.
 
Ora, que problema pode haver num singelo obituário? Apenas o facto de todo o primeiro parágrafo, que é enorme, ser constituído por apenas uma frase. Querem ver? Procurem perceber isto que aqui vou citar e que corresponde ao primeiro parágrafo deste texto. Tudo o que estiver entre parênteses rectos é fala minha.

«Marcella Hazan, nascida Polloni em Cesenatico, na Emília Romana, perto de Veneza, que morreu no passado domingo, 29 de Setembro, em sua casa num condomínio de Longboat Key, Florida, tendo ao seu lado o marido, Victor, judeu sefardita de família americana, nascido em Itália de onde voltara para Nova Iorque pouco depois de casar com Marcella para se ocupar do negócio de casacos e estolas de peles da família [fazia estolas com peles da família???], enquanto ela, que nunca cozinhara na vida, filha de gente burguesa com criadas em casa, licenciada e doutorada em ciências naturais e em biologia pela Universidade de Ferrara, horrorizada como o marido pela má qualidade gastronómica da comida americana desse tempo [ainda aí estão????] e como ele saudosa do que estavam habituados a comer em Itália (não seriam só saudades patrióticas pois, bem vistas as coisas, a italiana, a francesa e a chinesa são as três melhores cozinhas do mundo), já com bem mais de 40 anos metera-se a cozinhar em casa para os dois convencida pelo que ia fazendo e pelo entusiasmo do marido, começou a dar cursos a amigas no seu pequeno apartamento, a fama da sua arte espalhou-se, cursos maiores passaram a ser dados fora de casa no que chamou Escola de Cozinha Italiana Clássica fundada em 1989; juntamente com as suas receitas, o seu temperamento tornou-se objecto de conversas primeiro entre gulosos nova-iorquinos depois na sociedade em geral - escrevera  uma carta ao mais reputado chefe italiano da altura na costa oriental dos Estados Unidos, dizendo-lhe que a receita dele de risotto estava completamente errada do princípio ao fim: para já, risotto fazia-se numa frigideira e não num tacho (o chefe italiano não esteve de acordo mas ficaram amigos, encontrando-se de vez em quando e tomando um Bourbon, álcool predilecto dela) - e, para tentar corrigir o que considerava tantos error frequentes de conceito e de prática culinários italianos, publicou em 1973, "O Livro de Cozinha Italiana Clássica", ajudada pelo marido que escrevia admiravelmente o inglês dos Estados Unidos (publicara ele próprio dois livros muito apreciados sobre vinhos italianos) o qual adaptado em 1980 ao inglês dos ingleses por Anna Del Conte (na língua inglesa, não se praticam, entre Londres e Washington, desconchavos como o acordo ortográfico luso-brasileiro; Oscar Wilde dizia que a Inglaterra e a América do Norte eram dois países separados por uma língua comum - e assim se vão governando) ganhou um prémio distintíssimo [já encontraram algum ponto final???]; seguiu-se-lhe, em 1978, "Mais Cozinha Italiana Clássica"; os dois foram reunidos num só volume em 1992 e, em 1997, "A Cozinha de Marcella" recebeu o prémio mais importante atribuído nos Estados Unidos a livros de cozinha internacional: The Julia Child Award for Best International Cookbook.»

Isto, minha gente, é o primeiro parágrafo e, melhor, a primeira frase do texto. Tem de tudo: desde extensão até parênteses com informação adicional. Consegue, na mesma frase, falar da senhora, do marido, do modo como começou a cozinhar, depois a escrever, depois a relacionar-se com chefes... É de mais. Não sei se este autor escreve sempre assim, mas eu, que acho que até sei ler, não consegui perceber nada do texto. Fiquei estupefacta com esta má divisão frásica, com a mistura de assuntos dentro do mesmo parágrafo e frase, com a intrincada rede que aqui se montou e que vai contra aquilo que, para mim, são as regras para se escrever bem. Não percebi nada e, sou honesta, a partir daqui desisti.

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