Fiz uma Licenciatura em Estudos Portugueses ainda no tempo em que elas duravam quatro anos e consegui passar por ela sem cruzar-me com Camilo e com Pessoa. Extravagante, não é? Basicamente, durante muito tempo, o que conheci destes autores resumiu-se ao que me foi apresentado no ensino secundário pela melhor professora do mundo. No entanto, nem o seu talento para o ensino conseguiu fazer os meus quinze anos gostarem de ler o Amor de Perdição, que, na altura, achei a maior das estopadas.
Só já depois desses anos de Licenciatura, já como leitura recreativa e sem qualquer fim profissional, resolvi dar outra oportunidade ao Camilo. Li já vários dos seus livros, reli, inclusivamente, o Amor de Perdição, mas, de todos, aquele de que mais gostei foi este Vinte Horas de Liteira.
Além de haver um encontro muito propício ao surgimento de narrativas várias (encontro esse na liteira que se refere no título e durante as tais duas dezenas de horas que durou a viagem), estas são feitas maioritariamente por um amigo do narrador/escritor que, a propósito de tudo e de nada, vai contando mais uma e outra história que, diz ele, poderão servir ao amigo escritor nuns novos livros ou folhetins. Obviamente, este último bebe-as, tomando-as como inspiração para o seu trabalho de escrita. Mas a graça do livro vai além destas histórias encaixadas dentro da história principal. As referências ao trabalho de escrita e à forma como os autores são recebidos em Portugal, o humor que se exprime nas palavras tanto do narrador/escritor/personagem como do interlocutor que lhe oferece boleia na liteira, as palavras dirigidas directamente ao leitor como se o narrador estivesse simultaneamente a comunicar com o amigo e com quem já lê o que ele narrou durante a viagem e que o autor escreveu enriquecem grandemente o texto, transformando-o em mais do que a soma de alguns contos. Além disto, o final do livro apresenta uma conclusão e, mais interessante, um epílogo que nos explica o que aconteceu com parte das personagens das narrativas secundárias feitas pelo amigo do narrador.
A dualidade interessante e curiosa entre a capacidade de reflexão e de dissertação do narrador e a simplicidade do interlocutor que, ainda assim, adapta o estilo da narrativa consoante conte uma história de amor ou de outro tema enriquece sobejamente o livro. Aliás, os diálogos entre os dois amigos são, por vezes, tão espontâneos que parece mesmo que estamos a assistir a uma conversa entre duas pessoas que se conhecem e que trocam histórias conhecidas ou vividas entre si. Desde pedidos de esclarecimento, a interrupções, a correcções, tudo o que é próprio de uma interacção oral aparece aqui. Claro que, além disso, temos a riqueza de vocabulário de Camilo que, para alguns pode representar dificuldade, mas que se supera olhando para o contexto (que é sempre o melhor caminho a seguir). Também temos a sua fina ironia, a referência sarcástica a alguns elementos conhecidos... Enfim, tudo isto para dizer-vos que este livro tem que se lhe diga do início ao fim. Começando pela situação em que a conversa tem mesmo de surgir, passando pela forma como uma das personagens alimenta deliberadamente a bagagem de histórias do narrador e que, um dia, verá vertidas em folhetim, e pelo modo como em determinada fase da obra o próprio narrador experimenta na pele o final de um dos contos iniciados pelo amigo, tudo faz sentido e tudo é bom. É um bom livro e é Camilo a mostrar por que motivo é ainda hoje um dos nossos maiores. Acredito que este Vinte Horas de Liteira fosse muito peculiar na época em que surgiu pela primeira vez. Contar histórias é coisa que sempre se fez, mas contá-las e ouvi-las tendo como fito o trabalho de escrita, partilhando-se conselhos que o escritor deve seguir ao passar do oral ao escrito, enfim, aproveitar histórias curtas para abordar a questão da inspiração, da escrita e do trabalho que ela exige parece-me muito moderno.
Por tudo isto, é um livro que sugiro. Além de ser um dos nossos maiores autores, é um livro riquíssimo em histórias e em personagens, mas também em aspectos mais técnicos e já entrando no campo da narratologia e da teoria literária. Seja como for, é uma boa leitura e, se já antes estava voltada para perdoar o autor pelo tormento que foi o Amor de Perdição nos tempos da adolescência, agora sou eu que lhe peço perdão pela minha profunda e ingénua ignorância.
Já estarás perdoada :)
ResponderEliminarGostei muito também de "Eusébio Macário".
(Quão estranho é não te teres cruzado com Camilo e com Pessoa num curso de Estudos Portugueses)
Sabes, para quem sabe como funciona a Flul (ou funcionava naquela altura), não é assim tão estranho. Nós é que escolhíamos os professores que queríamos ter (quando havia mais do que um a dar a cadeira). Por vezes já sabíamos, no momento da escolha, qual o programa da cadeira. O que sabíamos certamente era o horário das aulas, o que interferia muito nas escolhas.
EliminarNunca me cruzei com Camilo porque no meu segundo ano, quando devia ter de escolher entre Estudos Queirosianos, Camilianos, Pessoanos ou Camonianos, as primeiras duas cadeiras não abriram e eu fui para a última porque entre Pessoa e Camões, gosto mais do «Príncipe dos Poetas». Em Literatura Portuguesa V, por acaso, escolhi uma professora (uma das melhores que tive) que abordou uma obra de José Cardoso Pires e a poesia de Ruy Belo e de Carlos de Oliveira. Outros colegas meus fizeram a mesma cadeira com outro docente que estudava Agustina e Fernando Pessoa. Ainda assim, hoje continuava a manter a minha escolha porque o tipo de análise literária que aquela docente nos ensinou é qualquer coisa do outro mundo.
Portanto, nem Camilo nem Pessoa, mas muito Camões, Cardoso Pires, Eça, Mário de Sá Carneiro, Carlos Queirós, Lídia Jorge, Sophia de Mello Breyner, Bernardim Ribeiro, Carlos de Oliveira, Herculano, entre outros portugueses, e Sebald, Melville, Proust, Machado de Assis, Homero, e muitos outros autores estrangeiros. A faculdade deu-me as ferramentas básicas. O resto é trabalho de leitura meu.
Obrigada pela explicação :)
EliminarDesculpa-me se fui muito exaustiva. É que à primeira vista parece assustador “saltar” esses dois autores num curso de Estudos Portugueses. Pessoa saltei porque quis, mas com o Camilo não tive qualquer hipótese. A propósito, vou redimir-me um bocadinho e fazer um curso livre sobre O Livro do Desassossego. Ainda não o li, o que é uma vergonha. Mas o curso parece-me muito bem. :)
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