Na edição deste mês do Courrier Internacional surge um artigo publicado pelo londrino The Observer que é absolutamente desconcertante. A capa refere-se a ele como «Caça aos gordos», situando essa mesma caçada em França. Ler o texto é entrar num mundo horrível que tendemos a esquecer que existe, mas onde se ostraciza gente que parece cometer o gigantesco pecado de... ter peso a mais.
O texto nasce a propósito de um livro publicado por uma professora francesa de educação especial que desde cedo na vida começou a ter excesso de peso. Até que, com 1,53 m se viu a pesar 150 quilos num país onde a magreza é celebrada e, aparentemente, lei a ser seguida por todos sob pena de se acabar como Gabrielle Deydier: ostracizada por uma sociedade que não quer ter lugar para gordos.
Uma das experiências terríveis relatadas por Gabrielle Deydier prende-se com a sobrevalorização do seu aspecto físico em relação às inegáveis qualidades académicas e profissionais que evidenciava: numa entrevista de emprego, foi admitida com distinção, já que era detentora de duas licenciaturas e parecia ter o perfil adequado para o cargo a desempenhar. Porém, já depois de admitida, foi avisada de que trabalharia com uma outra pessoa que teria um temperamento difícil. Feliz pelo novo emprego como docente de educação especial, minimizou este aviso até que conheceu a colega. Foi por ela recebida com um simpático «Gabrielle Deydier, é a senhora? Não trabalho com gente gorda.». Primeiro pensou que a colega estaria a brincar, mas rapidamente percebeu que não. Aliás, o modo como foi por ela apresentada à turma de meninos autistas com que Gabrielle iria trabalhar é também digno de nota: «Aqui está o sétimo deficiente da sala.».
Gabrielle está, presentemente, a viver num quarto de uma Pousada da Juventude francesa porque não tem rendimentos para poder ter um lugar seu. A obesidade prejudica a sua vida, mas talvez prejudique menos do que o preconceito dos outros em relação a ela. Acabou por ser dispensada da escola onde fora admitida porque a professora de temperamento difícil começou a fazer queixas sobre ela: que suava demasiado, que já a tinha visto em dificuldades para subir uma escada até ao terceiro piso... A direcção do estabelecimento de ensino, perante estes relatos, colocou-se do lado da professora mais antiga e decidiu dar a Gabrielle tempo para perceberem se estava motivada para continuar o seu trabalho. Agora reparem: esta motivação que procuravam não se prendia com a forma como ela desenvolvia as suas tarefas como professora, mas sim com a sua motivação para perder peso. Colocaram-na numa situação em que ou emagrecia e trabalhava ou permanecia como estava e ia para a rua. Gabrielle acabou por sair e quando questionada sobre a razão pela qual não recorreu à justiça, diz que todos, incluindo as autoridades, lhe disseram que nenhum tribunal lhe daria razão.
Depois de muito sofrimento e de considerar, inclusivamente, pôr termo à própria vida, Gabrielle conheceu, por acaso, dois escritores e, por conselho deles, passou para livro estas suas tenebrosas experiências. On ne naît pas grosse, o livro que daí nasceu, ainda não existe em português, mas é um sucesso no mercado francês e já tem os direitos vendidos para outros países. Desde a sua publicação, a autora tem recebido muitas cartas de pessoas que admitem sempre ter humilhado aqueles que têm excesso de peso e que, depois de lerem o seu livro, percebem que o que fizeram era errado, pedindo-lhe desculpa por isso. É assustador que existam pessoas que precisam de um livro para perceberem que gozar com alguém devido à sua forma física é uma atitude asquerosa e absolutamente reprovável.
Visitas ao ginecologista com comentários nojentos por parte do médico, colegas que negaram tê-la assediado puxando do argumento «Por que haveria de violar uma gorda?»... Gabrielle viveu de tudo um pouco e essas vivências transformaram-se num livro que, aparentemente, está a pôr muitos franceses a pensar sobre o preconceito que têm relativamente ao excesso de peso. Aliás, a autora do artigo refere mesmo que Gabrielle viveu uns tempos em Espanha enquanto estudava e que nunca sentiu por lá o mesmo preconceito. Todavia, refere que em França uma conversa rapidamente deriva para o seu peso. É como se as pessoas mais pesadas estivessem constantemente a serem lembradas de que o são e a serem culpabilizadas por não se porem rapidamente de acordo com os padrões de magreza que a sociedade estabeleceu. O excesso de peso, segundo o artigo, afecta não só a saúde, como já bem se sabe, mas toda a sua vida pessoal e profissional, como se fosse impossível encontrar a pessoa que existe sob a gordura corporal.
É um artigo chocante e nem consigo imaginar como será o livro de Gabrielle Deydier, uma pessoa academicamente muito qualificada, mas que vai sempre ficando na prateleira devido a uma imagem idealizada pela sociedade e à qual ela não corresponde. Sempre soube que o excesso de peso é, com frequência, alvo de chacota, mas não a este nível. Sempre tive consciência de que as pessoas são estúpidas e falam do que não interessa (teria eu uns dezasseis anos e uns cinquenta e cinco quilos quando fui chamada de gorda pela primeira vez... e tomara eu ter hoje o aspecto que tinha naquela altura!). Mas desconhecia esta fobia à gordura alheia ao ponto de arruinarem a vida de uma pessoa que podia estar a dar tanto à sociedade.
Infelizmente, no ano passado engordei um pouco de mais. Depois de vir para casa após despedir-me, comecei a acumular mais uns quilinhos. Fui a um casamento no Verão e uma tia «emprestada» sentou-se ao meu lado em determinado momento e, sem querer saber mais sobre mim, disse-me rindo que no dia seguinte íamos as duas para o ginásio. Mandei-a mentalmente para um sítio muito feio e respondi de facto tocando onde dói mais: perguntei-lhe pelo curso superior do filho. Note-se que o meu primo desistiu muito prematuramente de estudar e anda a servir às mesas (nada contra: mas combati o fogo com fogo, pois naquela altura foi o que me ocorreu). Hoje esses quilinhos já fazem parte do passado e outros continuam a desaparecer, mas não me esqueço da sensação de ter as pessoas a olharem e a comentarem como se fosse minha obrigação aparecer alta (que não sou) e esbelta (que já não sou desde a adolescência). Todavia, que eu saiba, nunca a minha figura me prejudicou na vida profissional, pelo que nem imagino o que Gabrielle Deydier e tantos outros como ela possam ter já sofrido nesse domínio.
Escrever isto no século XXI parece-me ridículo. Nunca tivemos tanta gente com excesso de peso e nunca lidámos tão mal com isso. Em algumas épocas da nossa história, ser «gordinho» era até o ideal. Hoje e em alguns lugares é o suficiente para eliminar todas as possibilidades da vida de um ser humano. E noutros lugares onde não se é tão drástico, é razão para dizer piadolas e fazer comentários absolutamente desnecessários. A mente humana, capaz das coisas mais brilhantes e admiráveis, é também responsável por momentos em que estar calado seria uma benção. Conseguimos ser muito maus uns para os outros, esquecendo-nos de que devemos sempre tentar colocar-nos no lugar do outro e imaginar o que sentiríamos se fôssemos ele. Chama-se a isso empatia e parece-me hoje que deve ter sido a primeira coisa a escapar da mítica caixa de Pandora, de tal modo se vai vendo cada vez menos. Nunca a gordura de alguém devia ser tema de conversa; nunca o seu peso devia prejudicar aspectos determinantes da sua vida como a carreira profissional; nunca o resultado de uma balança devia abrir as portas da humilhação e criar vítimas da sobranceria dos que não padecem do mesmo; nunca os quilos extra deviam definir um ser humano. Magros ou gordos somos mais do que o que aparentamos. Mal de nós se o nosso aspecto fosse tudo o que somos. Bem sei que para muitos é praticamente só isso que importa, mas depois, felizmente, há os outros e são esses que ainda trazem alguma esperança ao mundo.