Há uns anos contaram-me uma história verídica sobre uma criança que era tão objectiva, mas tão objectiva que era incapaz de imaginar qualquer coisa que não pudesse ser factualmente verificável. Um dia, na escola, contavam-se histórias. Uns alunos começavam, outros iam continuando e, a certa altura, o protagonista da narrativa, que era um elefante, já voava. Quando chegou a vez de a tal criança pegar na ponta solta e continuar a história, dirigiu-se à professora e disse que não o podia fazer porque os elefantes não voam. E por muito que ela tentasse explicar-lhe que era apenas uma história, que era imaginação, o menino não conseguiu colaborar na tarefa. Com o tempo, revelou-se um magistral aluno a Matemática e Ciências, mas tinha notas péssimas a Português. Os textos quase nunca lhe faziam sentido, interpretá-los era impossível.
Foi, talvez, o mais grave caso que conheci até hoje de incapacidade para imaginar, para compreender uma história que desafia a realidade. Se o texto se limitasse ao que pode e deve mesmo acontecer, tudo bem. Mas se uma flor nascesse ao contrário, se um gato falasse, se um tapete voasse, estaria tudo estragado porque isso simplesmente não é possível.
Estou, como podem ver ali ao lado, a ler o livro Matilda, um clássico da literatura infantil. Quando fui ao Goodreads colocar o livro como leitura actual, verifiquei que na ficha da edição estavam algumas perguntas que leitores colocaram sobre a obra. A primeira de todas questionava a capacidade que a protagonista tem de ler, uma vez que tem menos de cinco anos e nunca foi à escola. Alguém se dá ao trabalho de responder que o próprio livro explica que aquela menina, Matilda, é uma criança especial e com características únicas.
Ou seja: alguém que usa o Goodreads leu a história e considerou inverosímil o facto de Matilda ser uma ávida leitora tendo quatro anos, mesmo depois de o narrador explicar explicitamente que aquela não era uma menina normal, mas sim muito especial e curiosa. Alguém perdeu a capacidade de imaginar, alguém perdeu o jeito para fazer de conta.
Vivemos tempos em que temos de ser sempre sucintos e objectivos, em que temos de ir direitos ao ponto, sem rodeios e, sobretudo, sem perder tempo. Estes mundos alternativos em que elefantes voam e meninas de quatro anos sabem ler sem que lho ensinem acabam por ser, para quem gosta de ler, lufadas de ar fresco, escapes para uma realidade apressada que não tem tempo para imaginar. Perder essa capacidade que quase todos temos desde pequeninos de imaginar animais a conversarem, de viajar para outros mundos em cima de um unicórnio é triste e torna o mundo mais cinzento. E existem pessoas assim, como a criança de que comecei por falar-vos ou como a pessoa que colocou a questão no Goodreads. Pessoas que não imaginam, que não fazem de conta, que acham que a ficção tem de reger-se pela realidade quando ela é maravilhosa precisamente porque pode, em muitas circunstâncias, fugir disso tudo e ser outra coisa muito melhor. Alguns livros não podem fugir à verosimilhança e se o fizerem serão maus livros. Mas outros podem e fazem-no maravilhosamente. Obviamente, no meu perfeito juízo e com mais de trinta anos, não vou achar que tudo tem de ser real ou obedecer às regras da realidade, mas sei perceber quando estamos noutro domínio, quando tenho de, enquanto leitora, entrar no jogo e deixar-me levar pela imaginação do autor. Enquanto leio, a sua capacidade de fazer de conta também é minha e a leitura faz-se da cooperação entre estas duas capacidades de escapar para o irreal, para o que seria impossível (ou quase) no mundo que conheço.
Talvez devêssemos explorar mais o lado imaginativo das crianças, em vez de as mandarmos para tantas actividades extracurriculares. Talvez as devêssemos deixar brincar mais, fazer mais de conta em vez de só querermos que participem em competições com regras, que aprendam coisas com regras. Os pais e as escolas têm de perceber que imaginar não é perder tempo, mas que é importante e que ajuda inclusivamente no futuro. A criatividade nasce daí, dessa capacidade de sair fora da caixa, de ver além do horizonte. Enquanto só se pensar em tempo como dinheiro ou como algo que tem de ser aproveitado ao nanossegundo em coisas sérias, a imaginação perderá terreno e os elefantes não mais voltarão a voar.
O Dumbo voa.
ResponderEliminarRecuso-me a acreditar no contrário.
Se os pais lessem mais histórias às crianças, se fizessem disso um hábito diário já seria bom e uma grande ajuda.
Também é possível que essa criança estivesse num espectro de autismo?
Pelo que sei, e esta criança é familiar de uma amiga, não lhe foi diagnosticado nada. Portanto, até onde se sabe é apenas um caso de uma cabeça com um raciocínio absolutamente lógico que não compreende o que saia dessa mesma lógica. É um caso muito curioso. Em tudo é perfeitamente capaz e até é um bom aluno, tem apenas esta particularidade.
EliminarO Dumbo foi o exemplo que dei quando me contaram o episódio. É impossível não pensar no Dumbito.