segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Viagens com o Charley - o balanço


Terminei ontem a minha primeira leitura de um livro de Steinbeck. Neste caso, a narrativa de uma longa viagem que o autor fez pela América na companhia de Charlie, um Cão de Água de doze anos.

Steinbeck, autor já reconhecidíssimo no momento em que resolve escrever este livro, percebe que passou a vida a escrever sobre a América sem que, na realidade, a conhecesse assim tão bem. Por isso mesmo, decide arranjar um veículo grande que lhe permitisse dormir e cozinhar lá dentro e partir para um périplo que lhe permitisse chegar ao fim conhecendo melhor o seu país e as suas gentes.

O objectivo da viagem é nobre e admirável: depois de uma vida a escrever sobre um país, Steinbeck decide ir tomar o pulso às diferenças entre estados, paisagens, povos americanos. Contudo, fica sempre a dúvida: será que no final da viagem conhece melhor os americanos e o próprio país do que ao partir da sua casa em Nova Iorque? É que, se por um lado, esteve em lugares por onde nunca havia passado e falou com gentes com quem nunca tinha trocado duas palavras, o que viu na viagem foi apenas uma amostra. E assim, seguindo este raciocínio, uma viagem nunca está verdadeiramente terminada nem um país fica completamente esgotado. Mais ainda um país tão grande e variado quanto aquele. 

Mais: o autor-narrador conseguiu traduzir nas suas palavras a ideia de que podemos viajar sem ficar a conhecer rigorosamente nada dos lugares por onde passamos e onde paramos. Um dos exemplos que ilustram tal ideia prende-se com as vias rápidas, no sentido em que passamos por elas em direcção a um destino e sem nada para ver à volta. A velocidade é maior do que nas estradas mais pequenas, mas a paisagem é outra assim como é outra a atenção prestada. As estações de serviço são iguais e por muito que converse com quem lá pára, tal não chega para perceber como é aquele país, qual a realidade norte-americana. Como disse anteriormente, o autor admite ter chegado ao fim com a sensação de que não respondeu a todas as perguntas que tinha quando partira e que regressa a casa com ainda mais questões.

A escrita é bonita e oscila de forma interessante entre o humor, o sarcasmo e as descrições mais poéticas de paisagens, lugares e maneiras de existir com as quais o narrador se cruzou. Não aborrece: é cativante. Por isso mesmo, enquanto a viagem prossegue, nós viajamos também e qualquer livro de viagens que o consiga é um bom livro. Quilómetros percorridos, páginas viradas e a viagem continua.

Podia falar-vos de vários momentos do livro, mas vou escolher aquele que me pareceu mais significativo e talvez a parte da viagem que mais terá mostrado ao autor que por muito que percorra milhas e milhas de chão, nunca conhecerá verdadeiramente nem a terra nem as pessoas. Aliás, creio que será o episódio mais tocante de toda a obra. No sul, e tratando-se de uma viagem feita na década de sessenta do século XX, o autor toma conhecimento de umas mulheres a quem chamavam as «Chefes de Claque» e que mais não eram do que pessoas desprezivelmente racistas que diariamente se plantavam à porta de uma escola onde tinha sido aceite a matrícula de dois meninos negros. Assim, o que faziam era esperar a chegada das duas crianças e dos adultos que as acompanhavam para soltarem a língua e insultarem-nos odiosamente. O insulto estendia-se aos poucos pais de crianças brancas que insistiam em ter os seus filhos na mesma escola que as outras duas crianças. A actividade matinal daquelas mulheres já era uma espécie de atracção local que conseguia até ser espalhada pelos jornais, atraindo os olhares de todos os que não queriam perder tal espectáculo. 

O autor assistiu, então, à tal degradação da humanidade, mas pôde ainda conhecer o medo que os negros sentiam, o terror em que viviam. Mesmo quando conheciam alguém que não os via como diferentes, era praticamente palpável o pânico sedimentado por anos de racismo, de segregação. Pôde ainda falar com alguns daqueles racistas e num dos casos não conseguiu esconder a sua revolta, o que culminou num confronto que não acabou pior porque aconteceu em terreno dominado por si. 

Quando o assunto é uma viagem, nem sempre o que há para mostrar é bom ou completamente bom. Infelizmente, quando se conhece uma determinada realidade existe por vezes um choque. Perante isso, há duas opções: guardar essa má experiência para si mesmo ou contá-la ao mundo. Steinbeck, que afirma peremptoriamente o desejo de conhecer melhor o seu país, revelou mesmo no final do seu livro uma das facetas mais cruéis e desprezíveis daquele lugar. O facto de não se limitar a falar da paisagem outonal, da beleza dos lugares visitados, das peculiaridades deste ou daquele estado confere verosimilhança à narração, já que uma viagem é isso mesmo: uma porção de experiências que podem ser melhores ou piores, mas que olharemos de fora até nos deixarmos apanhar por elas. O olhar do autor-narrador foi, por isso, um olhar estrangeiro até certo ponto. Mesmo sendo um americano a conhecer terras americanas, adoptou um olhar distanciado, crítico. Tentou conhecer as gentes tão americanas como ele, mas de outros pontos do país, com outras vivências, maneiras de estar, crenças e, por isso mesmo, diferentes. Um outro episódio curioso que mostra este afastamento do estranho que chega relativamente a quem está é visível quando o autor visita a zona onde cresceu e se cruza com alguém com quem manteve amizade noutra fase da vida. Instado a regressar ao lugar que já foi o seu, tentou simpaticamente explicar que nem ele nem o amigo de infância eram as mesmas pessoas que haviam sido, que muito já tinha sido vivido e que agora os separava. Tentou explicar que não se regressa ao lar precisamente porque não voltamos os mesmos. Todavia, não foi entendido e esta sua forma de perceber a mudança que o tempo provoca em nós foi entendida como soberba, como mania de grandeza e desprezo pelos que outrora foram os seus amigos. E eis que assim a viagem até um lugar que foi o seu mostrou ao autor como os lugares acabam e nos expulsam tal como certos bivalves cospem o que não lhes interessa reter.

Por fim, importa-me dizer-vos que há momentos em que a gargalhada sai de cá do fundo. Certas aventuras do Charlie, o modo como o narrador descreve alguns episódios, o sarcasmo com que encara aquele cão que por vezes parece ter comportamentos humanos são muito divertidos. Por isso disse anteriormente que a escrita oscila deliciosamente entre o humor e a seriedade com que certas coisas são descritas e narradas. É curioso o modo como pelo menos uma vez o autor se serve do cão para conhecer as gentes de um determinado lugar por onde passa, como o Charlie cumpre precisamente a sua missão. Estão bem um para o outro podemos dizer. Aliás, toda esta viagem mostra uma sintonia tocante entre cão e dono e uma amizade bonita, mesmo que o dono por vezes se refira ao Charlie com muito sarcasmo. A verdade é que se o cão não tivesse tido um papel importante neste périplo, o seu nome nem figuraria no título. 

Viagens com o Charley abriu-me as portas para um autor de quem nunca tinha lido nada, mesmo tendo vários livros seus. Gostei tanto que sei que vou continuar a querer conhecer esta obra que foi galardoada com um Prémio Nobel da Literatura. Serão textos de outro tipo nos quais a viagem não será propriamente o tema principal, mas quero lê-los mesmo assim. Assim, se para iniciar uma viagem só é preciso dar o primeiro passo, também para chegar a um autor só é preciso ler um livro seu. Depois virão outros passos e outros livros até chegarmos gloriosamente ao final do caminho.

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