sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O Nobel de Bob Dylan

Embora ainda esteja constipada, arrastei-me até ao computador para falar sobre o tema do momento: o Nobel da Literatura entregue a Bob Dylan.

Assisti ao anúncio do prémio em directo e quando a senhora anunciou, ainda em sueco, o vencedor e a razão da escolha, pareceu-me perceber o nome do cantor, mas como não fazia sentido, esperei pelo anúncio em inglês. Afinal tinha ouvido bem.

Depois da estranheza inicial, pensei no assunto e não é fácil falar sobre as conclusões a que cheguei porque, de facto, o tema é complexo. Muito mais do que parece inicialmente.

O primeiro disparate que ouvi foi o daqueles que diziam que o Nobel da Literatura não podia ir para um cantor. Ora, o prémio foi para as letras que escreveu e não para a sua voz ou performance em concertos. Foi a palavra escrita nas suas letras, foi a poesia que produziu e depois musicou que lhe garantiu esta distinção. Além dessa poesia, o facto de ter sido muito engajada também a destaca e isso nós sabemos que é muito importante para o Comité Nobel.

Portanto, não me choca o facto de ser um cantor a receber o prémio por poder não escrever literatura. Dizer isso é ignorância. Lembrem-se que a nossa literatura começa, precisamente, com canções medievais (a lírica galaico-portuguesa) e que esta é tão importante que voltou a fazer parte dos currículos escolares. Mas se isto não for suficiente, lembrem-se de Homero e das suas epopeias. Há lá textos mais basilares na nossa cultura e que nasceram precisamente para serem cantados? A oralidade de um texto não lhe retira qualidade, apenas lhe dá outra dimensão.

O que me preocupa são, no fundo, duas coisas: o precedente que foi aberto e o que fica de fora. Relativamente ao precedente, preocupa-me esta mudança de rumo que aconteceu agora e que já tinha sucedido em 2015 (prémio que, a meu ver, foi muito mais chocante do que este). Se até aqui todos sabíamos mais ou menos o que esperar do Comité Nobel, a partir de agora é o desconhecimento total. Pode sair dali qualquer coisa, seja ela com sentido ou não. E digo isto porque se as letras de Bob Dylan podem ser consideradas poesia e, consequentemente, literatura, dificilmente posso aceitar prosa jornalística como literatura e, portanto, merecedora do Prémio Nobel da Literatura. Mas foi isso mesmo o que venceu no ano passado. Além deste aspecto, preocupam-me todos os autores que estão na lista, alguns já muito velhinhos, com uma obra literária imensa e que merece ser premiada e que vêem agora uma mudança num jogo que parecia ter as regras traçadas há muito tempo. Posso até não dizer que Bob Dylan não escreve literatura, mas daí a trocar autores como Kundera, Rushdie, Roth ou outros por ele é coisa que não me faz sentido. Parece-me injusto para os outros. Ele pode ganhar Grammys, os outros tinham o Nobel e já nem isso é deles. Além disso, acho que é um sinal terrível que se dá: o Nobel da Literatura premeia livros. Agora vão fazer-se livros a correr com as letras das canções de Dylan. Já existia um, penso que editado pela Relógio D’Água, e o resto eram as suas canções, cujos poemas se conheciam ouvindo-se a sua música. 

A sensação que tenho é que o Comité Nobel quer ser polémico. Mas parece que só quer sê-lo com a literatura. No ano passado fez a monstruosidade de atribuir o prémio a uma jornalista que escreve não literatura. Este ano deixa uma série de autores notáveis de lado para atribuir o prémio a um cantautor. Será que se o Roth pegar numa guitarra e cantar os seus romances passa a ter direito ao Nobel? E o Rushdie, que teve uma fatwa sobre ele durante tantos anos e que durante tanto tempo e que por isso mesmo esteve tão envolvido em causas como a liberdade religiosa, merecerá o Nobel se pegar no xilofone e recitar Os Versículos Satânicos em Fá Mi Ré? Estou a ser exagerada, claro, mas é para mostrar que é normal que haja uma enormíssima sensação de injustiça por parte dos escritores. É como se o Nobel da Medicina fosse entregue a um santo pela cura milagrosa de qualquer coisa. É inesperado e parece que deixa de parte quem de facto dedicou conscientemente uma vida inteira à literatura. O Bob Dylan escreveu, é verdade, muitas canções que são composições poéticas. Cantou, gravou discos, fez concertos. Mas será que ele pensava nele próprio como um autor de literatura? 

A parte boa disto é que levou as pessoas a pensarem no que é literatura. Onde está a literatura? O que dá características literárias a um texto? É só nos livros que encontramos literatura? Está visto que não. Há poesia em muitos lugares e aí vai existir literatura. Bob Dylan escreveu poemas que musicou e, por isso, pode considerar-se que escreveu literatura. Mas se eu fosse escritora estaria neste momento muito chateada com esta decisão. Muitos autores, eternos inscritos na lista dos possíveis vencedores, devem sentir agora que a sua vez nunca chegará porque agora o Comité Nobel pretende mudar as regras do jogo, pretende chocar e voltar ao que era habitual não acontecerá tão cedo. Ainda bem que o nosso Saramago o ganhou noutros tempos, pois se fosse agora talvez o prémio não lhe chegasse.

6 comentários:

  1. Estava a ficar preocupada com a ausência de comentário acerca deste tema. A primeira pessoa em quem pensei quando ouvi a nomeação foste tu, ahahah. Então é assim, posso dizer que não me sinto entendida o suficiente no tema para dizer se os versos das músicas são bons o suficiente para serem considerados poesia digna de Nobel. Acho que o poder e a influência que estes poemas têm, nenhum outro que só esteja impresso e nunca tenha sido cantado pode algum dia sonhar vir a ter. E isso parece-me muito relevante.
    Quanto à tua posição, não concordo nada com a parte da gestão de expectativas dos outros escritores, não me parece que isso seja função do comité Nobel.
    Enfim, ideias, mas lá surpresa isso foi! :)

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  2. Estive constipadíssima, por isso só agora consegui falar. Mas andei a pensar no assunto desde o anúncio. :)

    Falo nas expectativas dos outros escritores porque é o Nobel da Literatura e, portanto, atribuído a quem produz literatura. Deve ser frustrante passar uma vida a escrever, publicar, ganhar prémios literários atrás de prémios e depois verem o Comité Nobel a entregar prémios a uma autora de não literatura e a um cantautor (e aqui, esqueci-me de dizer na quixotada, devo dizer que a ser assim, preferia o Leonard Cohen). O Comité não tem de satisfazer ninguém, mas acho que anda há dois anos a fazer escolhas difíceis de entender, sobretudo para os escritores. Encaremos isto como a escolha do empregado do mês numa empresa e vai escolher-se um funcionário da empresa do lado. Custa um pouco a compreender e não sei até que ponto não descredibiliza ainda mais o prémio Nobel. Não sei bem se vai ao encontro do que esperava o fundador destes prémios.

    Sim, uma imensa surpresa. Até temo o que virá para o ano.

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  3. Bem, em relação à jornalista do ano passado, que eu não conheço e portanto nem sei se escreve bem ou mal, não é bem uma inovação quanto a escritos não literários. O Churchill recebeu o Nobel da Literatura pelos seus discursos no século passado, certo? Não sei se são palavras literárias, mas serão certamente das que mais influência tiveram para tornar o mundo no lugar que é hoje.

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    1. O caso do Churchill é em tudo semelhante. A questão aqui está na nomenclatura do prémio: se é Nobel da Literatura tem de premiar literatura. No caso da autobiografia do Churchill não sei porque não a li, mas memórias e autobiografia têm tudo para ter a componente que leva a que um texto seja literatura (embora nós saibamos que hoje em dia toda a gente escreve autobiografias e metade têm tanto de literário como eu tenho de carneiro). Se o Nobel da Física premeia descobertas na área da física, se o da Medicina premeia descobertas na área da medicina, por que motivo o da literatura tem de premiar tudo o que é escrito, seja literatura ou não? Não tarda tens um jornal a receber o Nobel da Literatura e não faz sentido. Quanto à questão da importância para mudar o mundo, não podemos ir só por aí, senão passa a ser o Nobel da Literatura-que-contribuiu-para-a-Paz. Se é Literatura tem de premiar Literatura.

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  4. Eu percebo o que queres dizer com a questão da nomenclatura, daí achar que provavelmente é mais literatura a poesia do Dylan do que os discursos do Churchill.
    Quando falo em influência é mesmo em chegar às pessoas, não necessariamente no sentido da paz ou de outra qualquer coisa louvável, mas em passar um mensagem clara. Eu acho que a função principal da escrita é comunicar, e não vejo grande interesse em alguém escrever alguma coisa fora de série mas que só meia dúzia de iluminados entendem. Claro que chegar às massas por si só não serve de nada, senão ganhava o Correio da Manhã. Mas a combinação das duas coisas é que faz uma obra memorável e digna de um Nobel.

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  5. Não fazia ideia que a vencedora do ano passado do Nobel da literatura era jornalista/escrevia peças jornalistas ou de informação. Tinha ideia, agora vejo que errada, que era mesmo escritora. E se assim é, a ideia que tinha de, precisamente, com a entrega do prémio ao Bob Dylan abrirem um precedente perigoso, esta mais acertada do que imaginava.
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