Durante a vida de um leitor, muitos livros lhe passam pelas mãos. Mas há livros e livros. Alguns lêem-se pela curiosidade de conhecer uma história, outros por puro entretenimento e, muito frequentemente, tanto uns como os outros acabam por cair no esquecimento. Lá fica na memória um ou outro pormenor, mas de um modo geral a maior parte do que lemos nestes livros vai à sua vida para longe.
Depois há outros. Há os livros que se lêem por qualquer motivo que não importa, mas que ficam. Ficam muito. São descobertas agradáveis que deixam o leitor feliz por ser isso mesmo: leitor. Livros em que pegamos com a mesma expectativa com que pegamos nos outros todos, mas que se revelam únicos, inigualáveis, difíceis de superar.
Este Eu Confesso, de Jaume Cabré, é uma surpresa para lá de boa no meio de uma biblioteca. Esteve ali alguns meses parado na estante e quando resolveu sair mostrou ser um dos melhores cinco livros que já li. Confesso que inicialmente me custou perceber o discurso do narrador, uma vez que tanto narra na primeira como na terceira pessoas e que tem várias narrativas encaixadas na principal, ainda que se passem em tempos e espaços completamente distintos. Mas percebendo-se este modus operandi do narrador, e compreendendo o tipo de narrador que ali está e que obrigatoriamente não poderá dar-nos uma narração linear, o livro transforma-se num código que apetece descodificar. As referências culturais que nele se encontram são imensas, contudo não aborrecem: desafiam o leitor. Tudo neste livro é um desafio ao leitor. É preciso memória e concentração para ler este maravilhoso e único romance. Porém, dedicando-lhe tempo, ele torna-se no que de melhor podemos ler.
Não consigo fazer-vos uma sinopse do livro. Para isso convido-vos a lerem o que diz na página da Tinta da China sobre o livro e que corresponde ao texto da contracapa. Há tanto neste livro que é impossível apresentar-vo-lo dizendo “acontece isto e aquilo”. Em boa parte, o livro é a biografia de uma personagem, desde que era um miúdo inteligente de Barcelona, até ao seu final. Pelo meio encontramos de tudo, várias épocas históricas, diferentes espaços e personagens, repetições de gestos, mostrando que o ser humano pode avançar no tempo e repetir o bom e o mau que outros fizeram no passado. E vamos sempre seguindo a história de Adriá, o protagonista, a quem tudo o que ama é roubado. Adriá, que expia culpas históricas que não deviam ser suas, mas que passam a ser. No centro disto tudo, um violino e a sua história que se liga à vida do protagonista de uma forma magnífica.
Tudo no livro é maravilhoso. Está extremamente bem escrito, tem um enredo e uma construção que são monumentais. Tudo nele é admirável. Não consigo dizer “gostei mais disto ou daquilo”. Contudo consigo dizer-vos o seguinte: nunca gostei de ler sobre as Guerras Mundiais. Nunca. Sejam testemunhos, história, diários: nunca consegui ler esses livros. Sobretudo sobre a II Grande Guerra e o Holocausto. Ora, este livro também passa pela II Guerra Mundial e essas partes são de uma pungência indescritível. Se tivesse de aplicar uma palavra a este romance, diria “humano”, porque mesmo no meio da maior das desumanidades ele consegue continuar a mostrar as pessoas, as suas relações, as suas dores e pequenas alegrias. É um romance muito humano na medida em que mostra aquilo de que somos feitos e muitos são feitos de mal, ao passo que outros são feitos de bem. Mas a maioria dos seres humanos vive sendo uma mistura destas duas coisas. As descrições que são feitas de diferentes personagens que viveram o Holocausto (como vítimas ou como culpados), as situações vividas que são narradas são perturbadoras. Pode ser ficção, mas todos sabemos tão bem qual foi a realidade (e sabê-la é muito diferente de senti-la, note-se) que este livro ganha em verosimilhança. Se não fosse a história do violino (perfeitamente possível, aliás, porque os objectos têm passado e alguns, se falassem, teriam muito que contar). A verdade é que consegui, devido ao livro, ter vontade de ler mais sobre as Guerras Mundiais. Eram matérias de que gostava muito na escola, mas que dispensava conhecer mais a fundo por saber que me chocariam (sou um “coração de manteiga” para o sofrimento dos outros, confesso). Com este livro, venci esse receio e já estou, de facto, a ler sobre o tema. É assim que os livros nos mudam.
Acho que é a primeira vez que faço isto, mas agradeço muito à Tinta da China pela tradução e edição dos livros deste autor. Além deste tenho os outros dois que a editora publicou: As Vozes do Rio Páramo e Sua Senhoria. Mas já fui ler a biografia do autor e sei que escreveu muito mais. Por isso, além de agradecer peço para que, por favor, dêem aos leitores portugueses a possibilidade de conhecer a obra deste catalão que, de 2003 a 2011, esteve empenhado na escrita de um dos livros mais ricos e completos que já tive o gosto de ler. Não são livros baratos, é verdade, mas que venham eles porque são livros assim que nos fazem perceber o valor e a importância da literatura. São livros assim que nos mudam, que nos enriquecem para sempre.
Tenho esse e espera, Já li o Sua senhoria, e não me encantou por aí além.
ResponderEliminarPor curiosidade, quais foram os outros 4 livros que mais gostaste?
Quero ler este livro mas tenho andado a adiar, é particularmente caro e não o encontro na biblioteca. Depois de ter lido o teu post, parece-me que vou ter reflectir acerca dos €24,90...
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