Depois destes anos a conviver com dois gatos absolutamente loucos, resolvi partilhar com o mundo um breve, porém estupidamente útil, manual de sobrevivência para humanos que convivem com estes felinos. No fundo, são algumas regras que devem ser seguidas de modo a que não passemos a vida mordidos, arranhados ou, quem sabe, assassinados por gatinhos numa das esquinas da nossa casa. Se tem gatos, esta quixotada é para si. Aproveite-a que é de graça e inclua-a na sua vida: ela pode prolongá-la. Muito.
Ora bem, vamos então às regras que, se devidamente observadas, tornarão a convivência entre humano e gato numa coisa mais ou menos pacífica (dependemos sempre do humor deles). Grafarei doravante o nome do animal em causa com letra maiúscula, pois refiro-me aos gatos em geral e também porque tenho um medo tremendo de lhes faltar ao respeito e acabar chacinada.
1.ª Regra - Ter sempre plena consciência de que quem manda é o Gato. Nós limitamo-nos a viver em casa dele e a desempenhar o papel de escravos das divindades felinas.
2.ª Regra - Quando o Gato quer, o Gato tem. Seja comida, festinhas ou brincadeira: não há cá «Agora não posso, Tareco.». O não cumprimento desta regra pode causar dores excruciantes.
3.ª Regra - Mudar os lençóis da cama com o Gato no quarto pode ser giro, mas também extremamente perigoso. Para evitar males maiores, utilize umas luvas próprias para a falcoaria ou um fato de apicultor. Nunca, repito, NUNCA opte por deixar sua majestade fora do quarto ou ao abrir a porta pode ter uma surpresa.
4.ª Regra - Evite vestir ou transportar coisas que tenham penduricalhos, sob pena de ganhar um penduricalho novo que tem dentes aguçados e unhas capazes de tornarem as dores de parto em algo para rir. Cerifique-se de que não «deixa pontas soltas». Se não o fizer, não se queixe, pois o Gato terá o direito de exercer o seu poder (que é imenso).
5.ª Regra - Não tente mexer em atum sem utilizar a frase «Eu já dou!», seguida do efectivo acto de dar um prato bem composto com esse peixe delicioso. A observância desta regra pode evitar um ataque do Gato e já sabe que ele ganha sempre. A propósito: o ataque por privação de atum é o pior.
6.ª Regra - Abanar o pratinho da ração não é dar ração. Nunca pense que pode enganar o Gato. Ele tudo sabe e tudo vê. Quando menos esperar, tê-lo-á a roer-lhe os pés ou a afiar as unhas na sua perna esquerda.
7.ª Regra - Aprenda o mais rapidamente possível que o seu conceito de «prato com comida» não é o mesmo que o do Gato e ele é que sabe. Se tem um buraco no meio e muita comida à volta, encare isso como sendo um prato vazio que tem obrigatoriamente de ser enchido. Recorde a regra anterior: abanar o recipiente não chega. O Gato é um ser superior e ele sabe como dar cabo de si sem deixar vestígios.
8.ª Regra - Se vir o Gato de barriga para cima, não ceda à tentação de meter a mão naquele pêlo fofinho. Provavelmente, tratar-se-á de uma armadinha urdida pelo Gato: mostrar a sua zona mais fofa com todo o descaramento, sabendo que o dono não resistirá a fazer umas festas. O que se seguirá envolve lágrimas e gritos de dor, já que o Gato enrolar-se-á sobre si próprio, tornando a sua mão refém das suas múltiplas unhas e dentes.
9.ª Regra - Aprenda a manipular o Gato. Atenção que «manipular» tem aqui o sentido de mexer. Recorde a regra anterior e lembre-se que embora o todo seja perfeito, há partes do Gato em que não se deve tocar, pois não é suficientemente bom para o deus felino e porque pode gerar a ira dele. Acredite: preferirá cuspir bolas de pêlo em vez de sentir a ira do Gato.
10.ª Regra - Se o Gato tiver de tomar comprimidos, converta-se a uma religião, se não tiver, e comece por rezar. Talvez até por fazer uma promessa à divindade da sua devoção. Dar um comprimido ao Gato pode ser tão perigoso como colocar a mão numa hélice em funcionamento. Assim, recorrer à Fé pode ser mesmo a sua única solução.
11.ª Regra - Cortar as unhas ao Gato, dar-lhe banho e penteá-lo podem ser as últimas tarefas que fará na vida. Certifique-se de que tem um testamento válido antes de realizar qualquer uma destas actividades. Se o Gato lhe permitir alguma delas sem luta, verifique com atenção se se trata mesmo de um gato. Pode ser um gerbo e nunca ter notado.
12.ª Regra - Saiba que o Gato é um ser superior. Se ele se deitar sobre a roupa escura que vai vestir nesse dia e que deixou disponível em cima da cama enquanto foi tomar banho, aguente e não chore. Pense que assim todos saberão que tem um deus peludo em casa e admirá-lo-ão pela bravura com que enfrenta o desconhecido (e o terror) diário. Um rolo autocolante pode, em todo o caso, auxiliar bastante. Evite apenas que o Gato veja que se descarta assim do pêlo que ele, tão atenciosamente, quis colocar na sua roupa com o fim único de melhorá-la.
13.ª Regra - Se o Gato dormir consigo, adopte uma postura passiva e nada territorial relativamente ao espaço ocupado por cada um. Embora o Gato consiga ficar muito compacto ao enrolar-se de modo a reservar todo o calor, se lhe for possível ocupar 3/4 da cama e deixá-lo destapado, ele fá-lo-á só porque pode. Aguente resignadamente, pois o Gato é o dono de tudo o que possui, mesmo que lhe tenha sido oferecido pela sua mãe. A cama é dele, o colchão é dele, o cobertor é dele, você é dele. O caminho da resignação é o menos doloroso. O outro envolve arranhões e dentadas, por isso dói mais.
14.ª Regra - O Gato, ao contrário do cão, desconhece o advérbio de negação. Aliás, o Gato, quando ouve a palavra «Não!», padece de surdez temporária. Por isso, nem se esforce: deixe-o partir tudo. Uma decoração minimalista está sempre na moda e o Gato é que sabe. Alguma vez viu um gato fora de moda? Ora aí está.
15.ª Regra - Se vir o Gato em posição de ataque, barrique-se e ligue para um dos seus contactos de emergência: pode estar em perigo de vida. Se ele estiver em posição de ataque e o rabinho abanar de um lado para o outro, saiba que será imediatamente atacado sem qualquer misericórdia. Nesse momento, já não estando a tempo de fugir, limite-se a encomendar a sua alma ao criador, pois o Gato fá-lo-á em fanicos.
16.ª Regra - Se gosta de uma cama limpinha, de um chão imaculado, de um sofá sem cocós, limpe cuidadosa e diariamente a caixa de areia do Gato. Se não o fizer, estará implicitamente a conferir-lhe o direito de se aliviar na sua camisola favorita, na sua almofada, nos seus ténis ou na sua cara se o apanhar a dormir. Se não limpar a caixa de areia, evite dormir de boca aberta.
17.ª Regra - Não assuste o Gato. Além das pontas aguçadas, existem outras armas letais escondidas no Gato. Saiba que na parte traseira da entidade felina existem umas glândulas que expelem um pivete nauseabundo quando, por exemplo, o Gato é vítima de um susto. Se não quer ir trabalhar fedendo a bacalhau podre (o cheiro não sai facilmente), evite os sustos. Lembre-se de que ninguém acreditará quando disser «A culpa é do Gato.», pois todos sabem que ele é um ser superior e muito asseado.
18.ª Regra - Se não queria o sofá arranhado, não comprasse um. É do conhecimento geral que os sofás são arqui-inimigos do Gato e séculos de História têm mostrado batalhas infindas em que o Gato domina o sofá com o poder das suas unhas. Se o seu Gato descobriu o sofá, em vez de o trancar fora da sala, agradeça aos céus ele não ter descoberto as suas costas.
19.ª Regra - Certifique-se sempre de que o seu relógio não está a fazer reflexos na parede. Caso isso aconteça, tire o relógio ou ampute já a mão. Mais tarde ou mais cedo o Gato arrancar-lha-á.
20.ª Regra - Respeite o espaço do Gato. Se ele está a dormir, deixe-o dormir. Se ele está na caixa de areia, deixe-o estar. Faça-lhe festas quando ele pedir e apenas nos sítios certos. Brinque com ele e proporcione-lhe exercício que o deixe cansado, mas não prestes a cair para o lado. Dê-lhe água fresca todos os dias e comida, porque caso não tenha notado, ele não tem mãos para ir servir-se sozinho. E já que você mora em casa dele, então que sirva para alguma coisa e que trate daquela divindade peluda.
Cumpra escrupulosamente estas regras e ambos viverão em paz. Ou talvez não porque com o Gato nunca se sabe.
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