sábado, 28 de janeiro de 2017

Manuais escolares e misérias

Ontem percebi que há um manual de Português do 11.° ano que introduz o estudo de um capítulo do Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, com uma frase do senhor Pedro Chagas Freitas, retirada de um livro seu chamado Prometo [não me lembro do resto, mas não é importante]. 

Quase daí da cadeira. Isto está ao nível da heresia. A sério, senhores da editora?! De todo o material que há no mundo para falar de heróis, só vos ocorreu uma frase desse senhor para colocar num manual escolar?! Quando eu estudava, os livros estavam pejados de frases de clássicos para comentarmos ou então traziam excertos de críticas literárias com a mesma finalidade. Mas daí a ir buscar o Pedro Chagas Freitas para tentar explicar o que é um herói antes de apresentar aos discentes as façanhas de Simão Botelho na novela camiliana vai um passo de gigante. Já estou a imaginar que na unidade seguinte, quando o Carlos da Maia se enfiar na cama com a irmã, o momento de amor será introduzido por um excerto das Cinquenta Sombras de Grey, e os alunos imaginarão um Carlos dominador e uma Maria Eduarda muito virginal a entregar-se ao doido das coisas sado-maso. E assim, na loucura, quando estudarem Antero de Quental e Cesário Verde e os seus cenários muito escuros, muito locus horrendus, muito nocturnos, feios e abjectos por vezes, saltam de lá uns excertos do Crepúsculo e similares, com lobisomens a uivarem à lua, pedindo-se aos alunos o paralelismo entre o ambiente nocturno em que se movem o vampiro e o lobito adolescente apaixonados e o sujeito poético dos poemas "Nox" e "Cristalizações". Deus me valha.

Adenda: E não me venham com a história de que é uma forma de incentivar a leitura, através de paralelismos com materiais contemporâneos que continuo a ter a certeza de que há por aí bons autores portugueses que já falaram de heróis e que não são o Pedro Chagas Freitas com os seus livros cheios de modus vivendi para pessoas precisadas. A escola tem a obrigação de apresentar aos alunos o que de melhor se encontra para que depois eles, já fora do ensino, decidam se é esse o caminho que querem continuar a trilhar na busca do conhecimento ou se, por outro lado, preferem não ler nada ou ler o que não presta. O que depois fazem é com eles, mas a escola tem de lhes dar o que é inequivocamente melhor. E as editoras deviam colaborar com as escolas e não fazer manuais que deixam muito, mas muito a desejar. Isto já parece aquela altura em que para ensinar aos alunos o que era um regulamento, uma editora optou por colocar num manual escolar o regulamento do Big Brother

Medo.

4 comentários:

  1. Não só a minha alma está parva, como toda eu estou parva.
    (Não gosto nem um bocadinho desse senhor)

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    1. Pois, eu também fiquei assim quando vi a citação desse senhor como ponto de partida (e de reflexão) para o estudo do herói no Amor de Perdição.

      Eu até podia não gostar dele, mas encontrar nele qualidade literária que justificasse a sua inclusão num manual. Mas nem uma coisa nem outra. Eu aqui nem culpo a escola, que quando escolhe os manuais não consegue, evidentemente, analisá-los à lupa. Responsabilizo as editoras que levam demasiado a sério a história de ir buscar exemplos próximos dos alunos para os conduzir aos textos mais afastados, numa espécie de ponte entre o presente e o passado. A ideia é boa, mas atenção ao modo como a concretizam. Como dizia Ítalo Calvino, cabe à escola apresentar aos alunos o que de melhor se fez. Fora da escola lerão o que quiserem, mas dentro dela a obrigação é expô-los ao melhor. Pois... ele tem razão, tem. Mas depois há estas coisas...

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  2. Não é preciso medo. É preciso muito medo. Eça, Ortigão, Camilo (!), Camões e tantos outros poetas e/ou escritores portugueses que merecem o respeito de todos, incluindo as editoras, devem estar a rebolar-se no túmulo.
    ****

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    1. Mas mesmo que quisessem exemplos mais actuais (que é a moda do momento no ensino) há tantos e bons que se podem ir buscar: Gonçalo M. Tavares, João Tordo, Afonso Cruz, José Luís Peixoto, José Rentes de Carvalho, Lídia Jorge, Agustina Bessa-Luís, Alice Vieira, Mário de Carvalho, Tatiana Salem Levy (espero não estar a enganar-me no nome)... sei lá, tantos! Mas não: vamos a um livro que eu nem sei qualificar. Que desgosto! E olha que até considerei o manual como sendo muito jeitozinho. Tristeza...

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