sábado, 14 de janeiro de 2017

É preciso ser burro!

Nem sei se já falei disto ou não, mas se falei, perdoem-me a repetição: acreditem que é a indignação que provoca a redundância.

O semanário Expresso está, desde a semana passada, a publicar em seis volumes uma biografia de Estaline. Tal como já publicou a biografia do Hitler, uma história da Segunda Guerra Mundial, uma História da Cultura, uma biografia do Salazar, romances de Camilo Castelo Branco, Os Maias e uma continuação desse romance escrita por vários autores portugueses... É normal e costumeiro o Expresso oferecer livros aos seus leitores. Ajuda a vender o semanário e quem já tem o hábito de o comprar agradece o miminho. Portanto, não é a oferta da biografia de Estaline que me apoquenta: o que me enerva são as inúmeras vozes que se têm levantado para criticar a escolha do livro a oferecer. Dizem estes eternos descontentes que é uma forma de “endeusar” um tirano sanguinário. Que podiam oferecer biografias de outras pessoas que dessem bons exemplos aos jovens em vez de dar a conhecer a vida do responsável por muitas e muitas mortes. Que é uma vergonha oferecer-se a biografia do Estaline e não a do Salazar ou do Hitler, coisa que o Expresso já fez, mas que os ignorantes desconhecem. Que o Estaline não merece a atenção. Que assim nunca ninguém vai esquecer esta besta. Que assim o Expresso quer é limpar a imagem de Estaline. Que há outras coisas melhores. Que...

Enfim, um chorrilho de disparates que só me levam a dizer que é preciso ser burro. Mas BURRO todos os dias. De uma ignorância tal que faz com que a perna manca de uma mesa pareça um professor de Harvard distinguido com um Prémio Nobel pela maior das descobertas científicas. Uma burrice capaz de fazer um saco das compras vazio corar de vergonha! Então agora só se podem revelar as partes bonitas e fofinhas da História? Então agora temos de eliminar do conhecimento geral as biografias dos ditadores porque conhecê-las é o mesmo que divinizá-los?! Desculpem-me, mas esta gente que anda a malhar no Expresso pela escolha do biografado é tão, mas tão jumenta que estaria bem no "País dos Brinquedos", aquele lugar onde, no Pinóquio, todos se transformam em burros.

A História é feita de muitas coisas. Umas melhores e muitas piores que nos obrigaram, como diriam os espanhóis, a “sacar adelante”. O século XX, o século em que tudo aconteceu, está cheio de figuras importantes. Quando dizemos importantes não estamos a dizer que são anjos do Senhor ou demónios do piorio: estamos simplesmente a dizer que as suas acções, a influência que tiveram sobre os acontecimentos fizeram a História mudar. Para melhor, para pior... Depende. Conhecer a vida destas pessoas não as diviniza per se. Supostamente, todos temos um cérebro que nos permite distinguir o certo do errado, todos temos um espírito crítico que nos leva a julgar como acertadas ou não determinadas atitudes. Ler sobre alguém com peso histórico não me faz passar a adorá-lo e a colar posters com a sua carinha no meu quarto (imaginem-me a colar posters do Estaline na cabeceira da cama e a dar-lhe um beijinho todas as noites). Fará de mim, com certeza, uma pessoa mais informada, mais capaz de perceber o que aconteceu, mas não necessariamente uma admiradora do biografado. 

O branqueamento da História deixa-me louca! É preciso ser-se, repito, muito burro para achar que isso traz vantagens. É o mesmo que os jumentos que quiseram alterar o Huckleberry Finn ao substituir a palavra “niger” por “slave” tentaram fazer. Coitadinhas das crianças que vão ler um insulto odioso. Mutilemos o clássico: sempre é mais fácil do que explicar-lhes o contexto de aparecimento da obra (nem é para isso que os professores são pagos nem nada... E eu sou professora, sei o que estou a dizer.). BURROS é o que são. E pior: são-no muito assumidamente, já que não têm pudor em ir para as redes sociais apregoar as suas nada fundamentadas opiniões. Então a partir de agora fazemos o quê? Só lemos o que é bom e bonito? Vidinhas de santos? Ai que porra, com tantas religiões diferentes, como havemos de saber o que podemos ou não ler? Olha, o melhor é não ler nada que é para não ferir nada nem ninguém. Burros, burros, burros!

Já quando o Mein Kampf saiu com a Sábado foi o mesmo fandango. Aqui d’El Rei que se está a publicar o programa político de um dos maiores criminosos da história! Ai que esta gente quer repetir  esta brincadeira! Mas será que têm a nossa inteligência em tão pouca consideração? Eu li uma parte do Mein Kampf e não tatuei a cruz suástica numa nalga. Pelo contrário: não só percebi que a mente daquela besta era para lá de retorcida ainda antes de fazer o que mais tarde veio a fazer como consegui passar a detestá-lo mais (afinal ainda era possível). Mas os burros do costume odiaram que o livro fosse publicado. 

A mim não me assustam as biografias dos ditadores, as histórias desta ou daquela guerra ou os livros com modos de pensar que causaram a morte a milhões de pessoas. O que me assusta é a ignorância e o gosto que muitos têm em enfiar a cabeça debaixo da areia. Esses, os pouco informados que só querem um mundo cor-de-rosa cheio de unicórnios a vomitar purpurinas e arco-íris de veludo, é que metem medo porque querem esconder o que de mais importante temos: o passado enquanto guião de tudo o que correu mal e de que vale a pena continuar a desviar-nos. Irra, que é preciso ser burro!


Nota: E já agora, esta edição é feita em parceria com a editora Alethêia e os livros são muito jeitosos. São gordinhos, o tipo de letra e o espaçamento permitem uma leitura cómoda. Só lamento que esta biografia deixe de fora a infância do biografado. Parece que o autor escreveu um outro volume dedicado a esses primeiros anos de Estaline e esta será muito mais a biografia política. Enfim, quem depois quiser conhecer mais sobre esta figura pouco simpática mas incontornável do século XX posteriormente pode procurar informação noutros livros ou fontes.

6 comentários:

  1. Por acaso ainda não me cruzei com essa polémica... mas já nada me surpreende. Aos disparates que leio no meu facebook. Acho até que o desconhecimento generalizado de algumas partes bem negras do nosso passado comum é que nos faz cometer os mesmos erros uma vez atrás da outra.

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    1. Se vires os comentários às publicações em que o Expresso publicita estes livros, verás que são raros os que não consistem em críticas negativas com falta de fundamento. Se me dissessem que o livro não é bom porque o autor não tratou bem o tema ou que a edição é ranhosa, eu até entendia (embora, como disse, a edição, neste caso, até esteja bem catita), mas criticar o facto de um jornal distribuir gratuitamente a biografia de um ditador apenas porque foi um ditador é ridículo. O Expresso anda a anunciar estes livros há algumas semanas. Então, sempre que faz um post sobre isso, lá vêm as parvoíces do costume. Mas não se trata de uma ou de duas pessoas. São várias a dizerem coisas como que o Expresso quer divinizar o homem, que é mau exemplo para os jovens... É inacreditável!

      Acho mesmo que é de ter medo de tanta estupidez. As pessoas só querem saber do que é bom e depois é como dizes: repetem os erros vezes sem conta. Se lessem mais e falassem menos é que era.

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    2. O fenómeno das caixas de comentários e das redes sociais é assustador.

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    3. Cada vez considero mais que deviam estar electrificadas e sempre que alguém fizesse um comentário estúpido, pumbas!

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  2. Desconhecia essa polémica e acho inacreditável que se queira só mostrar o lado bom da história... E é ainda mais inacreditável que haja quem defenda o Trump e outros que tais porque 'dizem as coisas como são' mas depois não se possam conhecer os factos ou saber mais acerca do Estaline, do Hitler ou do Salazar. Uma vez comprei uma biografia do Salazar e perguntaram-me logo "Ah, tu gostas do Salazar?"...Hein? "pois, vais ler um livro acerca dele!" Desde quando é que ler uma biografia de alguém implica concordar com a sua posição? Enfim.

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    1. Muita gente é incapaz de perceber que não lemos só sobre o que gostamos. Também lemos quando queremos saber mais sobre alguma coisa ou alguém, independentemente de ser algo positivo ou negativo. Muita gente tem aproveitado os últimos tempos para ler biografias do Trump com o intuito de perceber melhor a peça que aí vem. Mas isso não quer dizer nem que o adorem, nem que passem de repente a achá-lo maravilhoso. O Salazar fez o que fez e para nos percebermos melhor como portugueses, conhecer a figura é tão importante quanto conhecer a vida e os feitos de reis ou de outros políticos que, para o bem ou para o mal, influíram na nossa História.

      Pensar que ler a biografia do Salazar ou do Estaline é perdoar-lhes e branquear as suas acções é estúpido e mostra bem as limitações de algumas pessoas relativamente a toda a informação que existe ao seu dispor.

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