segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Anna Karénina - o balanço


Era um dos meus objectivos de leitura para 2017 et voilà: em Janeiro já está lido e arrumado na prateleira do moço (não vá ele dar pela falta de um dos seus russos). 

Sobre este romance de Tolstoi só posso dizer aquilo que digo sobre outros clássicos: é que é um monumento. O final é, talvez, dos mais conhecidos da história da literatura e eu quando comecei a ler o livro sabia muito bem como acabava. Não sabia era o caminho trilhado para se chegar a tal fim. Já vi adaptações cinematográficas deste romance (vi, inclusivamente, aquele em que a actriz é a que consta desta capa da edição da Relógio D’Água), mas como de costume o livro vai bem mais longe e é muitíssimo mais rico.

Tolstoi é brilhante nas descrições, sobretudo nas descrições de sentimentos que nós não conseguimos pura e simplesmente descrever. Ele consegue e nós ficamos a pensar que sim, que ele tem razão, que tal sentimento é exactamente o que ele consegue pôr em palavras e que nós nunca conseguiríamos explicar. Alia-se essa excelente capacidade à história que quer contar e está feita uma obra-prima da literatura.

Confesso que sempre julguei que estaria inequivocamente do lado da Anna Karénina, mas em muitos momentos do livro achei-a ruim até mais não. Tive pena do marido dela que até era tão permissivo relativamente aos «desvios» dela com o Vronsky. Porém, acabei por perceber que ali não podemos simplesmente estar do lado de um contra o outro porque o que está no livro é demasiado complexo para isso. Tolstoi é tão realista naquilo que conta que diante de nós estão personagens que podiam perfeitamente ser seres humanos de verdade, com todos os seus defeitos e virtudes. Portanto, nem Anna Karénina é completamente digna de piedade, nem o seu marido é merecedor da nossa pena. Ambos, como na vida real, fizeram más escolhas, seguiram caminhos que não deviam ter seguido. A história não se resume ao adultério de Anna, pois vai muito além disso. 

Depois, por outro lado, e em total contraste com os casais formados por Anna e outro homem, existe Lévin e Kitty. Este último par vive um amor tão verdadeiro que acaba por tornar ainda mais disforme as relações da protagonista. E as mudanças vividas por Anna, a sua asfixiante falta de paz, tornam-se mais visíveis porque simultaneamente Kitty alcança, precisamente, um invejável estado de tranquilidade. Mesmo Dolly e Oblonsky, no meio das traições dele e da falta de dinheiro, conseguem ir mantendo uma relação mais ou menos constante, talvez porque ali existam outros valores (ainda que o irmão de Anna seja um verdadeiro tonto). Anna e Vronsky é que são uma dupla que se assemelha a um balão que vai enchendo até estar de bom tamanho. No entanto, continua-se a soprá-lo e sabemos que inevitavelmente rebentará, ainda assim é impossível parar de soprar.

Ler um clássico nunca é perda de tempo e Anna Karénina é mais um dos exemplos que sustentam esta ideia. É um livro viciante, muito difícil de largar, mesmo que saibamos que fim terá a protagonista e mesmo que estejamos atentos a todos os sinais que o narrador nos vai entregando aqui e ali. Tolstoi é, como disse, um excelente criador de situações que tinham tudo para ser reais em lugares que, se não o são, pelo menos são verosimilhantes. Anna Karénina é, repito, mais do que um livro: é um monumento.

5 comentários:

  1. A partir de uma "historieta de aldeia" Tolstoi construiu este livro notável.

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    1. De facto, é extraordinário porque se reduzirmos este livro à sua acção, a história é do mais básico possível (o que prova que não são enredos rocambolescos que fazem os grandes livros). O que faz romance ser o monumento literário que é é mesmo o trabalho do autor na forma como contou a história, como descreveu personagens, pequenos gestos, sentimentos... Há um momento, quando nasce o filho do Lévin, em que o narrador explica os sentimentos daquele homem que tinha acabado de ser pai, o que sentia ele e é dos mais bonitos pedaços de prosa com que já me cruzei. O pai que não sente relação nenhuma com aquele recém-nascido, que sente até alguma desilusão por não estar a sentir nada do que pensava que ia sentir ao ver o bebé, ouve-o espirrar de repente e, diz-nos o narrador, que aqueles pensamentos todos nem o deixaram perceber o enorme orgulho que experimentou ou ouvir o espirro do seu bebé. É absolutamente maravilhoso. É daqueles casos em que ficamos mesmo mais rendidos ao modo como tudo nos é narrado, do que propriamente ao que nos é contado.

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    2. Como dizes a história é básica. No entanto, Tolstoi ouviu acerca de uma mulher pobre da aldeia (Iásnaia Poliana)que fez o que Karénina fez no fim. E a partir do que ouviu criou este clássico inolvidável.
      Soube deste episódio e muitos outros na biografia "Tolstoy: A Russian Life", escrito pela biógrafa e tradutora especializada em língua e cultura Russas, Rosamund Bartlett. Outra bio escrita por ela é "Chekhov: Scenes from a life". Ambas muito interessantes.
      Os Russos para mim são imbatíveis. Que dizer de Dostoevski? A naufragar em dívidas (umas reais e outras devido a pessoas desonestas)constantes, com problemas de saúde e que escreveu as maravilhas que sabemos? "Crime e Castigo", "O Idiota", "...Karamazov" e tantos outros.

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    3. Tenho uma biografia de Tolstoi, mas não é dessa autora e creio que procura olhar mais para os seus últimos anos de vida.

      Os russos têm uma enorme capacidade de desconstruir o ser humano e mostrá-lo ao pormenor, descrevendo mesmo o que nos parece indescritível.

      Não sei se leste o texto do Nabokov sobre Anna Karenina (está no final da edição da Relógio D'Água) em que ele põe o Dostoievsky no fundo da lista dos autores russos. Diz por ordem quais são os melhores (começando por Tolstoi) e depois diz que se fosse professor dos russos, Dostoievsky e um outro de que não recordo o nome estariam à porta da sua sala à espera para discutir a má nota recebida. É uma imagem curiosa.

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  2. Dostoeivski sempre foi o odiozinho de estimação de Nabokov. Salvo erro, até no livro "Nikolai Gógol" ele arranja maneira de falar sobre a mediocridade de Dostoievski.
    Pelo pouco que sei eram de temperamentos absolutamente distintos.
    A meu ver, as frases longas de Dostoievski não são pesadas nem parecem estranhas antes apropriadas. Somos conquistados pela substância e não pela beleza da aparência. Parece-me que escrevia a partir do seu próprio âmago, quase um diálogo alma-a-alma. Nabokov não era assim, gostava de brincar, divertir e deleitar o leitor. Era elegante e irresistível. Tinha muita auto-ironia que, muitas vezes reflecte um mecanismo de defesa, Dostoievski não tinha tempo para isso. A auto-imagem não o preocupava. Se não entregasse os livros na data indicada não tinha dinheiro. E mesmo escrevendo livros sobre pressão...
    Um era um esteta e um linguista, outro estava longe disso (como ele próprio afirmou em alguns livros) mas e apesar de muito apreciar Nabokov nunca encontrei num livro seu sentimentos que me despertassem grandes emoções e com tanto significado. Acho que até certo ponto, Nabokov nunca entendeu a natureza humana tão profundamente quanto a sua némesis.
    Em "Opiniões fortes" há paulada forte nos grandes escritores. Considerava Balzac outro medíocre, Brecht era um 0, Camus outro 0, Faulkner era péssimo escritor, Gorki era uma mediocridade formidável.
    Claro que não gostamos todos do mesmo mas por vezes parece-me haver algo para além do simples gosto.
    Enfim, escrevei demasiado e provavelmente com imensos erros mas o telemóvel não perdoa.
    Claro que escrevi apenas a minha opinião e haverá certamente quem discorde.
    Caso queiras ler mais sobre o assunto:
    http://www.nytimes.com/1981/10/26/books/books-of-the-times-066565.html

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