terça-feira, 1 de novembro de 2016

Uma leitora confessa-se

Gosto de ler, mas não sou a leitora mais voraz que conheço. Há quem pegue num livro e não consiga largá-lo. Eu consigo ir largando, ir alternando o livro com uma ou mais revistas ou com outros livros. Consigo fazer algumas viagens de transportes sem nem sequer ler nada. Os leitores não são todos iguais apenas pelo facto de gostarem de ler. Por exemplo, além de raras vezes ler tão concentradamente que me esqueço do mundo à minha volta (é coisa muito rara de me acontecer e, depois de muito tempo, só senti com o livro Eu Confesso, de que falei aqui), a minha concentração é ainda menor quando leio contos. Nunca percebi por que motivo isto me acontece, mas é um facto: eu já sou desconcentrada por natureza, porém consigo sê-lo ainda mais se em vez de um romance estiver a ler um conto. Pior ainda: um livro de contos.

Sobre a desconcentração tenho a dizer que não fui sempre assim e que isso tem piorado com a idade. Lembro-me de ser mais nova e de ler horas e horas a fio sem distrair-me com tudo, sem precisar de estar constantemente a pousar o livro para beber água... Acho, muito sinceramente, que, pelo menos no meu caso, as muitas coisas que nos rodeiam prejudicam a minha capacidade de escapar para dentro do texto. Tenho de parar porque recebi um email, porque o telefone tocou, porque preciso de enviar uma mensagem. São muitas as coisas a acontecerem a todo o momento e se quando eu era mais pequenita não havia um iPad a ligar-me ao mundo a todo o momento nem um Whatsapp a apitar a cada instante, agora há. E de alguma forma acho que estes factores de distracção interferem ainda mais quando estou a ler uma narrativa breve do que um romance. Pode parecer estranho, mas explico-vos o meu raciocínio (sim, já perdi tempo a pensar nisto porque esta minha desconcentração constante durante a leitura entristece-me, mais ainda porque todos sabem que eu adoro ler e adoro livros): quando lemos um romance, o assunto, as personagens, o(s) narrador(es) mantêm-se até ao final do romance, mas com um livro de contos, o tema, as personagens, a acção vão variando de texto para texto e é contantemente necessário criar ligações com cada conto que começamos a ler. Se num romance eu tenho sempre o mesmo fio condutor, num livro de contos eu posso ter dezenas de histórias muito diferentes e tenho de ser capaz de estar sempre a predispor-me para começar a conhecer novos enredos, novas personagens, novos tempos, novos espaços, novos narradores. Quem acha os contos algo menor, devia pensar no que eles exigem do leitor e, com certeza, passaria a tirar-lhes o chapéu. Agora, por exemplo, estou a ler os contos de Gabriel García Márquez e noto que estou constantemente a pousar o livro. É uma leitura soluçada e isso chateia-me, mais ainda porque é um autor de quem gosto muito. Já li contos absolutamente fabulosos, outros que nem tanto, mas em todos eles fiquei com a sensação de que não estava completamente envolvida na leitura. Lia, mas estava constantemente a pensar noutra coisa. E quando estava a ler um conto de que até estava a gostar, ficava aborrecida por ele terminar e por, uma vez mais, ter de passar ao próximo, com novas personagens, com uma nova história, com tudo de novo. Novamente, distraía-me ao fim de duas frases e a história repetia-se. 

Isto é característica minha, mas não deixo de ficar triste por perceber que estas porcarias com as quais convivemos hoje (tablets, telemóveis, centenas de canais na televisão, internet) e de que tanto gostamos, interferem em hábitos que vêm desde sempre. Eu sei que devia desligar tudo e saber distrair-me, mas uma coisa que também adquiri com o tempo, principalmente nos últimos anos no lugar onde trabalhei, foi a ansiedade e a incapacidade de me desligar completamente dessas coisas porque de repente, imagino eu, pode chegar um email importante, posso receber uma chamada daquelas que preferia não receber... Enfim, constato agora que anos de uma tortura laboral constante tinham de deixar marcas e para mim isto é tudo uma bola de neve. Foram anos a receber emails a cada cinco minutos, a olhar ansiosamente para o telemóvel, a temer qualquer coisa que me pudesse chegar por esta via. Em consequência disso, não consegui desligar o meu cérebro durante estes anos e, como tal, foram raras as vezes em que li sem sentir que uma parte do meu cérebro estava noutro sítio (geralmente no trabalho ou com as pessoas e os problemas de lá). Anos disto. Resultado: já lá não estou e ainda não consegui voltar à velha forma. Os malditos emails de lá já não me podem chegar ou afectar, mas eu continuo agarrada ao tablet ou ao telemóvel como antes. Parece que tenho de reaprender a ser o que era, mas antes tinha vinte e cinco anos e agora estou a quinze dias de fazer trinta e um.

E é isto: como leitora confesso-me. Não sou a melhor leitora do mundo. Gosto de ler, adoro livros, mas por vezes sinto até uma certa angústia por esta falta de concentração para com os textos, sobretudo para com os mais curtos. Por vezes sinto que esta minha cabeça (que já foi tão boa) nunca mais vai ser o que era. Ou aquele trabalho deu mesmo cabo de mim ou estou apenas a ficar velha.

1 comentário:

  1. Depois de estarmos constantemente conectados, é muito difícil desligarmo-nos do mundo. Sei bem o que é estar dia e noite quase a olhar para o email e para o telemóvel, à espera que a próxima "nova bomba" lá do escritório. É um sufoco constante.
    Mas entendo o teu problema com os contos, porque uma pessoa, automaticamente, cria relações com a história e os personagens e logo depois já tem que se libertar desses laços, especialmente se vier outro conto logo a seguir. E o próprio ritmo diário não ajuda nada.
    Eu vou intercalando as leituras, dependendo do meu estado de espírito e da minha paciência. Mas bem que queria ter mais tempo para ler =)
    ****

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