Ontem, o Daniel Oliveira (o que participa no programa “O Eixo do Mal”, da SIC Notícias) fez uma publicação no Facebook na qual criticava veementemente a “qualidade” dos livros de José Rodrigues dos Santos (JRS). Fui espreitar os comentários, pensando que as pessoas concordariam com ele e cai-me tudo ao chão quando percebo que o autor da publicação estava a ser altamente censurado pelo que tinha dito. Alguns dos comentários são até, parece-me, ofensivos e desnecessários. Começo, por isso, a considerar que agora há um D. Quixote histérico dentro de cada um de nós, sempre pronto a pegar na lança e correr à porrada moinhos de vento ainda mais inofensivos do que os do livro de Cervantes. Mas adiante.
Um dos comentários arrepiou-me tremendamente. Uma senhora, no seu desejo de defesa do jornalista da RTP que por acaso se dedica à escrita e vende que se farta, disse que ele, JRS, era para ela o sucessor de... Eça de Queirós. Não consegui evitar e tive de perguntar à senhora se estava mesmo a falar a sério. Se se referia ao Eça de Queirós de Os Maias e de O Crime do Padre Amaro. A senhora confirmou e disse que a JRS só faltava a ironia queirosiana porque de resto, nas descrições e tudo, eram muito parecidos. Ora, só por aqui me chega: se lhe falta a ironia queirosiana, como raio poderia ser o seu sucessor se a ironia de Eça era tudo? Ela distingue-o de todos.
Ainda pensei responder à senhora, mas depois de pensar um bocadinho na coisa acabei por concluir que ao domingo estou de folga e não tenho de dar aulas a ninguém. Bem bastam os dias úteis para ouvir disparates como os que ouço vindos de MIÚDOS, gente pequena ou já adolescente que ainda anda a aspirar informação para um dia fazer escolhas e dar opiniões formadas sobre o que lhes passar sob a vista (e que, portanto, sempre têm mais perdão para os disparates). Explicar a mulheres adultas que comparar JRS a Eça de Queirós daria, noutros tempos, direito a Auto-de-Fé no Terreiro do Paço tamanha é a heresia dá trabalho e não me pagam para isso.
Por outro lado, tenho pena. Quando uma pessoa é incapaz de ler Eça de Queirós e outra coisa cuja qualidade estético-literária é, digamos, “diferente” e escondidita (para dizer o mínimo) e não reconhecer as diferenças, já está tudo perdido. Não há professor de Português ou de Literatura deste mundo que consiga voltar a pôr o mundo nos seus eixos na alma de quem fez tal comparação. Muito menos utilizando apenas a caixa de comentários de uma rede social.
Mas é, enfim, muito doloroso saber que há quem diga estas coisas com um grau de certeza quase inabalável. Eça de Queirós pode ser comparado a outros autores, sim. Foi desde sempre comparado ao brasileiro Machado de Assis e nessa comparação, meus caros, não sei se o segundo não ganha (da genialidade de Machado de Assis poderemos falar noutro dia), já se falou dele em alguns estudos em comparação com Zola, por exemplo. Comparar não é mau e se for com os melhores então é perfeito. Mas comparar alguém que nos deixou das melhores páginas de prosa da literatura portuguesa; que espelhou a nossa realidade da época em romances plenos de ironia, mas que nunca sacrificaram a qualidade da narrativa no altar do “avacalhanço”; que soube descrever como quem “dá a ver” in loco as personagens, os lugares, as paisagens que se avistavam de dentro de uma caleche ou através de uma janela voltada para um jardim; que soube relacionar os espaços exteriores com o que acontecia na vida das personagens, que foi capaz de ir deixando indícios que nos permitiam (pelo menos aos mais atentos) perceber o que viria de lá a seguir, através de um pormenor num tapete ou de umas rosas vermelhas numa jarra; que soube, num tempo sem internet e acesso facilitado ao saber, num tempo em que os livros chegavam de Paris através do comboio... Comparar esse escritor com um jornalista que pesquisa muito para escrever os seus livros, mas que parece que não tem o mesmo domínio da palavra que tinha o Eça e que parece procurar sempre uma teoria da conspiração (opinião minha) que é pomposamente revelada no seu romance é de mais. Absolutamente de mais. É não ter a mínima noção do que é a literatura, do que é o cânone literário, do que são os clássicos, do que transforma um livro num clássico e do que exclui um livro dessa designação. Eça sobreviveu ao tempo: morreu há mais de cem anos e continua a ser lido. Mais: é de tal forma um monumento literário que os seus livros se estudam no sistema educativo português (tal como, se não estou em erro, Machado de Assis se estuda no brasileiro). Só isso já me dá conta do que é Eça e a sua obra. Será que o mesmo acontecerá um dia aos livros de JRS? Na minha mais que modesta opinião, duvido.
Vende muito, será bom entretenimento (para quem aprecia o género, o que não é o meu caso), mas não me parece que tenha o que é preciso para perdurar na memória das gerações. Leva-se para a praia e lê-se bem, não exige um esforço interpretativo tremendo, mas não creio que um dia venha, como o Eça, a merecer ser estudado pelos alunos em formação. Um fenómeno de vendas não é sinónimo de qualidade. O livro do menino que diz que foi ao céu e voltou também vendeu milhões de cópias e nem por isso tem a garantia de vir a ser mais do que isso: um livro no meio de tantos outros que todos os dias são colocados nas prateleiras das livrarias. Vender é uma coisa, vencer é outra. Aparentemente só muda uma letra, mas neste caso faz toda a diferença. Eça vende (muito em parte porque é estudado), mas menos que JRS, provavelmente, mas venceu o tempo. JRS vende muito, contudo, será capaz de vencer o teste do tempo e da memória ao longo das gerações? Eu duvido. E vocês?
Tive de respirar muito fundo quando li a parte do comparar Eça com o outro (perdoa-me a ligeireza).
ResponderEliminarPessoas.
Isso mesmo: pessoas. E não perceberem o tamanho do disparate que disseram... É tenebroso. :S
EliminarAhahahahah, o Eça e o JRS? Nem a mãe do JRS se deve ter lembrado dessa. (eu tb acho que as teorias da conspiração estão presentes em muitos dos livros - só se salvam delas os primeiros romances históricos - a minha teoria da conspiração diz que quando virou fenómeno de massas, começou a tentar usar os livros para espalhar as suas ideias mais ou menos políticas)
ResponderEliminarO Eça é SÓ o meu autor português favorito. Da sua ironia à sua actualidade, Eça é brilhante, mesmo quando precisa de quatro ou cinco páginas para descrever o Ramalhete. Não é comparável a JRS. Tal comparação daria, sem dúvida, noutros tempos, direito a Auto-de-Fé no Terreiro do Paço.
ResponderEliminar****