Por incrível que pareça, apesar de ter estudado no ensino superior durante uma imensidão de tempo, nunca tinha ido à Biblioteca Nacional até à semana passada. Já ouvira dizer que aquilo era uma complicação e um dos comentários que fui sempre ouvindo sobre as visitas de outros à BN envolviam a antipatia do pessoal relativamente aos utilizadores da biblioteca.
Bom, no meu caso, ou fui bafejada pela sorte naquele dia chuvoso ou então não sei. Lá simpatia não faltou: desde o segurança da entrada até ao funcionário da livraria Babel que funciona dentro do edifício, passando pela senhora do balcão de atendimento que se desfez em mil para descobrir se ainda me seria possível adquirir um catálogo publicado pela BN há uns anos, todos foram muito simpáticos e prestáveis. Na sala de leitura, por exemplo, trouxeram para a minha mesa um livro cuja cota não correspondia à do exemplar que pedira para consultar. Quando dei conta desse facto, explicaram-me que haviam trazido a cota alternativa porque o livro que eu queria estava «interno» (seja lá o que isso for) e, portanto, não podia vir para a sala. Choraminguei que só tinha aquele dia para estar na BN, que tinha feito um esforço enorme para ir lá naquele dia, que precisava MESMO de consultar o livro. Para mal dos meus pecados, além do livro estar interno, já passava da hora de receber pedidos. Ora, um dos senhores do atendimento lá teve pena de mim e deu a ordem de que me fossem buscar o livro. Uns dez minutos depois estava salva: já depois da hora, um livro indisponível apareceu milagrosamente na minha mesa. Ouvi um coro de anjos e tudo.
A determinada altura precisei de fazer fotocópias. Lá peguei eu na primeira edição dos Novos Contos da Montanha, do Miguel Torga, e fui até à sala das digitalizações e cópias. A funcionária explicou-me que era mais barato se fosse eu a fazer as cópias e, simpaticamente, foi ensinar-me como a coisa se processava (ensinamento desnecessário uma vez que me 'doutorei' em fotocópias perfeitamente tiradas durante a minha licenciatura e mestrado). Arrepiei-me até à espinha e arredores quando a senhora, para demonstrar-me como funcionava a máquina e como devia posicionar o livro, LAMBEU o dedinho para facilitar a mudança de página. Sim, LAMBEU O DEDINHO para virar a página na PRIMEIRA EDIÇÃO DE UM LIVRO DO MIGUEL TORGA. Senti-me a desfalecer e só conseguia imaginar que se aquilo era feito a um livro de 1944, o que seria feito àquele papel difícil de manusear utilizado em edições do século XVIII ou XIX... O que faria num dos meus velhinhos Quixotes? Tenho a impressão de que morria se visse um dedo lambido num livro meu. Enfim...
No final ainda passei pela Babel, onde o funcionário também foi de uma simpatia enorme. Foi graças a ele que consegui um livro de que precisava e outro que queria há milhares de anos. À saída, ainda fui ajudada pelo segurança que, vendo-me com os sacos de papel da livraria, ofereceu-me um saco de plástico para proteger as minhas compras da chuva. Portanto, minha gente, contrariamente a tudo que me foi sendo dito ao longo do tempo, fui muito bem tratada na nossa Biblioteca Nacional. Talvez tenha tido sorte de principiante, não sei. Mas gostava muito que esta fosse a regra e não a excepção.
E antes de me pôr a andar porque tenho ali um trabalho que não se escreve sozinho, deixem-me dizer-vos que estar naquela sala de leitura é uma experiência curiosa. É talvez a biblioteca onde vi menos livros, mas só de imaginar o que aqueles corredores devem esconder, apetece-me perder-me naqueles labirintos e espreitar as toneladas de memórias que ali se guardam. É formidável saber que naquela enorme casa de pedra está muito do que foi saindo em livro e em periódico no nosso país. É uma casa de memórias, tal como a Torre do Tombo, e é valiosíssima por isso mesmo. O que somos enquanto povo, mas também um espólio importante de livros únicos (portugueses ou não) está ali. Amanhã celebra-se o Dia Mundial do Livro e por antecipação segue o meu cumprimento à Biblioteca Nacional. Ainda que por vezes possa enlouquecer os seus utilizadores com o processo complicado para se aceder aos livros, a verdade é que zela pelas nossas memórias e esse trabalho não tem preço.
Nota: A fotografia da sala de leitura saiu daqui.