sábado, 27 de julho de 2013

Tréguas (?)

Quando estudei no ensino secundário, ainda existia a diferenciação entre Português A, todo literatura, e o Português B, muito mais levezinho. Como menina de Humanidades que era, tive a sorte de frequentar o primeiro, facto que hoje agradeço muito porque definiu o meu caminho posterior. 

Alguns lembrar-se-ão de que no Português A se estudava tudo (ou assim parecia) o que de mais importante as nossas letras tinham produzido até então. Começava-se pelos contos tradicionais, ia-se pelas cantigas de amor e de amigo, dava-se um pulo às crónicas de Fernão Lopes, descodificava-se a Menina e Moça, batia-se continência a Os Lusíadas e à lírica camoniana, bem como uns quantos poemas de contemporâneos seus, conhecia-se o sermão pregado aos peixes pelos nosso Padre António Vieira, lia-se alguma daquela risível poesia barroca, cheirava-se o locus horrendus nas palavras de Bocage, viajava-se com Garrett até ao Vale de Santarém para ver a famosa janela da Joaninha, lia-se a sua poesia e a sua famosa tragédia, perdíamo-nos com a perdição de Camilo, seguíamos até à saborosíssima Questão Coimbrã, conhecíamos a tristeza de Antero de Quental e a crítica da sociedade romântica em Os Maias. Passava-nos uma ou outra "farpa" sob os olhos e seguíamos até Teixeira de Pascoaes com o seu saudosismo e uma gigantesca quantidade de poetas do século XX português. Por aí aparecia-nos a por mim pouco apreciada Aparição, porque não tive a sorte de estar no lote das escolas que leccionavam já o Memorial do Convento. Enfim, chegávamos ao final do ensino secundário com uma ideia muito clara do que tinha sido, desde o início, a literatura portuguesa, com as suas inovações e imitações. Não se estudava gramática como agora, mas formavam-se leitores, algo que por estes tempos não se faz com o mesmo sucesso.

É óbvio que aos quinze anos muitas destas leituras custavam a engolir (e creio que hoje ainda custariam mais aos que agora têm essa idade), mas de forma mais ou menos coxa faziam-se e a verdade é que acabei por regressar mais tarde aos livros que deixei a meio nessa altura. Também acabei por chegar sozinha ao Memorial do Convento. Aqueles três anos com uma excelente professora serviram de semente para o que viria depois.

Mas nem tudo são rosas. Houve textos que quase me levaram à loucura. Ler o Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco foi uma daquelas tarefas que pretendo não repetir em dias de vida. Lembro-me de que li aquilo num sábado à tarde porque teria o teste na semana seguinte. Ia vomitando a história de tão ultra-romântica que era. Aquele Simão Botelho e a honra que não o deixou fugir com a amada quando tal foi possível e que preferiu deixar-se prender causou-me engulhos! Fiquei nauseada com o diacho do azar que aquela gente tinha sempre ao virar da esquina. No fim vai para lá uma mortandade que assusta. Ganhei ódio ao livro e, em jeito de metonímia, ao autor. Nunca mais li nada do senhor e quase me benzia ao ouvir o seu nome. Escolhia sempre os realistas ou os naturalistas para ler. Nunca Camilo porque aquele romantismo reciclado e exagerado me tinha posto doente aos quinze anos.

Nas muitas idas à Feira da Ladra lá me fui cruzando com os livros dele, geralmente ao preço da chuva. Acabei por comprar um ou dois sem saber se os leria na realidade, mas esta semana lá me decidi. A tentativa de tréguas com este autor português dar-se-á por intermédio de Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado. A escolha deveu-se à graça do nome e ao facto e saber que o autor não escreveu só romances cheios de amores impossíveis. Também escreveu textos cómicos, geralmente considerados menores pela crítica. Pois é mesmo a esse "menor" que vou e já vou em meia centena de páginas palmilhadas. Até agora fez-se bem e sem engulhos. Gosto muito das falas das senhoras, com a mania de que são fidalgas, mas a utilizar palavras e expressões bem populares e muito típicas do norte do país. Adoro essa cor local dos livros que incidem sobre um lugar bem delimitado e identificado, ao contrário daqueles que, de tão desenraizados, podiam ter a acção a passar-se em qualquer lado que não faria diferença nenhuma. Até aqui a história teve graça, por isso tenho a bandeira da paz a começar a hastear-se, embora com muita calma. Vamos lá a ver se saem, ao fim de doze anos, as tão prometidas tréguas...


1 comentário:

  1. Filha,


    Munto folguê em ler esta sua postagem no seu muy rico y não menos nobre y digníssimo blogue. E sabe porquê? Pergunte lá o porquê.

    ...
    ...

    Já perguntou? Ora bé... porque eu também fiz Português A (pasme-se!!!). E certo era que não se me tinham ficado retidos na memória todos os nomes que ali desfiou. Lembrava-me da maioria e outros não estudê, como a Piquena e Moça, perinxemple. Guestei munto da poesia trovadoresca e palaciana, do Luís de Sousa que diz que era Frei, também guestei munto de Antero e lembra-se-me bem que o primeiro poema que li desse marafado se chamava "Nox". Era amorooooso, só queria que visse.
    E, como costumbre, concordo consigo: aquele programa dava-nos uma excelente visão daquilo que se produziu cá por areias de Portugal, como diria o sódoso José Régio.
    Mas olhe... agora já não há nada disto para ningué e até os modistas quase deixaram de fazer vestidos em cambraia (de um beijo :P apanhe esta). ACHO MAL! Qualquer dia até deixamos de ver gente com vestidinhos em macramés e os bebés deixam de comer bledines (que nem sei se é assim que se escreve).

    Mudam-se os tempos mudam-se as vontades...


    Despeço-me com amizade extrema (só para fazer pirraça ao não menos sódoso engenheiro Sousa Veloso),

    Filho

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