Portanto parece que há gente muito endinheirada que acha piada a "brincar aos pobrezinhos". Ainda bem que o facto de não se ter dinheiro para férias na Comporta e para luxos muito maiores já virou um tipo novo de brincadeira. Antes saltava-se à corda, jogava-se à macaca e ao berlinde. Hoje brinca-se aos desgraçadinhos que vivem despojados do que a vida tem de melhor. Que máximo, ouçam lá!
Acho, muito honestamente, que anda por aí uma enorme falta de talento para a escolha de palavras. Um apela à "união nacional" (glup) e outra praticamente diz que brinca àquilo que ninguém quer ser, mas a que muitos não estão a conseguir fugir. Não sei se a frase dita pela senhora que passa férias na Comporta não tem um contexto que a explique bem porque não li o texto onde ela se insere. Contudo sei que se tornou viral e que caiu muitíssimo mal. Ser "pobrezinho" não tem graça nenhuma e aposto que ninguém o é porque quer. Haver quem ache giro referir-se às férias que faz como uma troca de posição social a brincar é ofensivo para quem passa mal e a contar os trocos até ao final do mês.
Eugénio de Andrade escreveu num poema que "São como um cristal, / as palavras. / Algumas, um punhal, / um incêndio." Se umas refrescam e são espelhos que reflectem inúmeros sentidos, outras levam tudo à sua frente, incendeiam e fazem estragos por onde passam. É muito importante que as pessoas, principalmente estas que são a minoria que passa ao lado da crise, meçam bem aquilo que dizem e o alcance que as suas palavras podem ter. A senhora podia dizer um monte de coisas: que durante as férias na Comporta experimentam um tipo de vida mais simples, que ali os luxos são menores do que aqueles a que estão habituados, que vivem ali dias marcados pela inexistência de elementos tecnológicos sem os quais não conseguem viver usualmente... Estou para aqui a imaginar argumentos, mas a verdade é que podia ter dito qualquer uma destas frases que a mensagem passaria. Porém, dizer que no seu lugar de férias brinca aos pobrezinhos é ofensivo. É de quem parece não ter consciência do que se passa nem do que diz. É verdade que com esta crise e com tanta austeridade andamos todos muito melindrados com as palavras dos outros, mas neste caso parece-me natural que todos nós, os pobrezinhos que não têm vasta fortuna, nos sintamos gozados. E isso já vamos sendo de sobra, não precisamos de mais nenhumas palavras mal medidas.
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