quinta-feira, 25 de abril de 2013

Uma enorme paixão

Os grandes livros, os que nos mudam e nos falam mais intensamente acabam por chamar-nos mais do que uma vez. É a esses que voltamos, são esses que desejamos voltar a escutar. A vida é curta e são muitos os textos que queremos conhecer, porém nem por isso conseguimos afastar-nos das releituras que sentimos a obrigação de fazer.

Não sou, devo admiti-lo, a pessoa que mais relê. Para que o faça é preciso amar, amar de verdade um livro e isso, constato, tem sido raro. Foram, até hoje, poucos os livros a que regressei. Aliás, apenas me recordo de dois (ignorando as releituras juvenis que fiz de volumes de "Uma Aventura" e outros do género): Todos os Nomes, de Saramago, e Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes. Se o primeiro me colocou (coloca ainda) uma série de questões, o segundo mudou a minha vida. Li-o aos dezoito anos porque saiu de forma gratuita com um jornal. Tinha sobre ele uma porção de ideias pré-concebidas e achava que ia odiar aquele cavaleiro andante e as suas aventuras. Felizmente, aos dezoito anos e embrenhada num curso superior de Literatura, tinha a mente suficientemente aberta para começar a ler uma obra longuíssima de que julgava impossível vir a gostar. Felizmente, também, os dezoito anos permitem admitir certos enganos e apadrinham novas paixões. E eis que o Quixote se tornou o meu livro, a minha paixão literária. Tive muita sorte: há quem faça uma vida de leituras sem deixar tocar-se desta maneira por texto algum.

Depois de ler o Quixote percebi tudo muito melhor. Desde os outros livros às outras pessoas, tudo ficou mais claro para mim. Foi livro a que muitos, uma imensidão de autores, foram buscar inspiração, por isso conhecer o Quixote é condição sine qua non para se perceber efectivamente o que outros autores quiseram transmitir-nos. É um dos livros mais conhecidos no mundo e, mesmo para quem não o leu, há aspectos partilhados e conhecidos. A sua iconografia, o poder das imagens que sobre ele se fizeram ajudaram (ajudam ainda) a aumentar a sua fama. Sobre o Quixote há imagens lindíssimas feitas por nomes sonantes como Doré, Picasso, Dali, Pomar. Há bailados, óperas, filmes, bandas desenhadas e uma imensidão de outros produtos que só nasceram porque um dia Cervantes fez de um fidalgo cavaleiro e de um homem "com pouco sal na moleirinha" seu escudeiro.

Bem vistas as coisas, li o Quixote há quase dez anos e levei uma semana a fazê-lo. Depois disso reli-o duas vezes e já fui relendo alguns capítulos de forma isolada. Nestes nove anos, e porque a paixão foi imensa, comecei a coleccionar edições da obra e tudo o que com ela tenha que ver. Não tenho uma colecção valiosa do ponto de vista material, não tenho nenhuma edição rara (tomara eu tê-la), mas adoro cada livro que a compõe e adoro sabê-la minha. Talvez isto nem seja gosto ou passatempo próprio de alguém com vinte e sete anos, mas que se lixe. Aprendi mais com o Quixote do que com muitas pessoas e tive mais companhia por parte daquelas páginas do que com alguns ditos amigos.

Por tudo isto e porque sinto já há alguns dias uma enorme saudade das palavras de um homem bom que queria mudar o mundo, vou até às prateleiras para procurar o livro com o qual farei a próxima releitura.

 "Num lugar da Mancha de cujo nome não consigo lembrar-me..."



2 comentários:

  1. tenho de partilhar uma frustração: ainda não li, na íntegra, o "Quixote" :(
    o absurdo é que sei que é daqueles livros "life-changing", mas de cada vez que pego na edição que tenho (ilust. Dali) abro-o e vou lendo fragmentos, porque não o consigo transportar comigo pela rua, entretanto, vou adiando
    tenho de resolver urgentemente esta questão (fiquei com vontade de chegar a casa e atacar -;))

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    1. Experimenta os dois volumes de bolso da BI. Além de serem mais baratinhos do que a maioria das edições, são muito mais fáceis de transportar. A tradução do José Bento não é a minha favorita, mas é muito próxima do texto original. Depois tens a edição vermelha que a Bertrand fez com a versão do Aquilino Ribeiro. Digo versão porque o Aquilino meteu ali a colherzinha dele e, portanto, aquilo ultrapassa um bocado os supostos limites da tradução. A verdade é que a versão dele consegue, em muitos momentos, levar-nos à gargalhada pelo uso de determinadas expressões.

      A tradução dos Viscondes de Castilho foi a que li em primeiro lugar e, embora não seja a mais fiel (realmente o José Bento leva vantagem nisso), foi suficiente para conhecer o texto e apaixonar-me por ele. Se não me engano, a Civilização publicou essa tradução em dois volumes. Só não sei se são muito fáceis de encontrar. De qualquer modo, as outras duas hipóteses (BI e Bertrand) são, talvez, as melhores para quem deseja um livro fácil de carregar.

      Lê este livro de uma pontinha à outra. Tu que adoras ler vais perceber que há uma vida d.Q. (depois de Quixote). Eheh. :)

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