terça-feira, 30 de março de 2021

O Círculo - o balanço

Wook.pt - O Círculo


Imaginem o seguinte cenário: uma empresa tecnológica, fundadora de uma rede social que procura constantemente novas formas de se atualizar e de se fazer presente na vida dos seus seguidores; com um campus maravilhoso que de tal forma oferece tudo aos seus funcionários que, em bom rigor, eles nunca precisam de sair de lá para suprir qualquer necessidade; uma empresa que incentiva práticas continuadas de socialização e de transparência entre as pessoas; uma empresa que quer opiniões, que deseja ver as opiniões a circular e a influenciarem outros; que procura a partilha constante de informação e as interações entre usuários das ferramentas por ela disponibilizadas.

Imaginaram esse lugar onde tudo é novo e bonito? Onde se pode fazer carreira com um monitor em cada pulso e uma câmara ao pescoço. Onde os segredos não têm lugar porque vão contra a transparência que aquela rede social e seus satélites promovem. Onde a privacidade é tida como egoísmo, pois a informação deve correr livremente a fim de chegar aos curiosos e aos que não a teriam de outra forma. Um mundo que vos tira a possibilidade de sussurrar, de passear sem que tenham de partilhar a paisagem que veem, que para seguir os vossos passos enquanto influencers, limita fortemente a liberdade e a privacidade de todos os que convosco interagem, desejem eles a exposição ou não. Imaginem uma vida cheia de monitores, imaginem-se a ter de registar cada passo que dão, a não poderem ir dar um passeio para espairecer sem terem de partilhar com outros o que viram, cheiraram, ouviram, porque não o fazer seria errado, seria privar outros das sensações que nós tivemos e, portanto, seria egoísta.

Se conseguiram imaginar tudo isto, ficaram com uma pálida ideia do que é descrito neste romance. E se sentiram a mínima vontade de viver numa realidade assim, devem mesmo dedicar algum tempo às suas páginas. Se depois disso mantiverem esse desejo, sugiro-vos a lobotomia e a oferta do cérebro à ciência para estudos.

Não vou alongar-me muito sobre o livro porque, como já perceberam, sou dada a escrever em demasia e depois acabo por afugentar os leitores. Vou apenas dizer-vos que este livro vale pela realidade extrema que apresenta. Uma realidade em que, de repente, passa a parecer normal que o direito de voto fique vinculado à presença numa determinada rede social e em que uma câmara ao pescoço durante todo o dia faz sentido porque «as pessoas têm o direito de saber». E em que um chip no corpo faz todo o sentido se isso ajudar a diminuir a criminalidade, ainda que a contrapartida seja a perda total do que conhecemos como vida privada. 

É importante ter consciência de que as personagens não estão ali para criarmos laços com elas. Na verdade, a protagonista é até bastante ranhosa e não era alguém que eu gostasse de conhecer. Mas é a realidade tentacular de uma empresa tecnológica que oferece tudo, TUDO, o que os jovens funcionários podem desejar... a troco da sua disponibilidade constante, partilha de dados constante e lealdade constante a um projeto que leva o orweliano Big Brother a extremos nunca vistos aquilo que realmente interessa. 

Houve momentos em que achei algumas ideias e discursos meio descabidos ou fora de tom. Não pareciam fazer muito sentido em personagens com aquelas idades. Mas, superando isso e atentando simplesmente na escalada de voyerismo e de diluição das fronteiras pessoais, o livro lê-se bastante bem e coloca algumas questões interessantes, sobretudo para quem utiliza muito as redes sociais. Nos dias que correm, vale a pena pensar na exposição que queremos fazer da nossa vida e no que podemos ou não fazer para nos protegermos destas realidades virtuais que dizem ter nascido para fazer maravilhas por nós, mas que nos lembram de vez em quando que não há almoços grátis e que para tudo há um preço. 

Uma leitura interessante para o fim de semana prolongado que se aproxima.


PS.: Não ganho nada com as sugestões que aqui faço, por isso o que vos digo sobre os livros é aquilo que verdadeiramente penso sobre eles. Sempre foi assim, sempre será assim. Boas leituras.

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