sábado, 27 de março de 2021

Ler nem sempre significa compreender

No passado dia 22 de março, o jornal El País publicou um artigo sobre os maus resultados das crianças espanholas no que à compreensão da leitura diz respeito. Ou seja: concluiu-se que os miúdos até leem, mas não compreendem o que leem. Este não é um problema exclusivamente espanhol, como bem sabemos. Por cá passa-se o mesmo e, se nada se fizer para inverter a situação, as consequências serão dramáticas. É que se para muitos os livros são coisa de outros tempos com a qual não vale a pena «perder» tempo, a necessidade da leitura e da compreensão do que se lê fará parte da vida futura dos miúdos que hoje leem um texto e não o compreendem. Pensem na quantidade de vezes em que ler e perceber o conteúdo lido foi fundamental para resolverem um problema. Desde o mais simples manual de instruções, passando pelas linhas de um contrato que temos de assinar (de preferência entendendo bem onde estamos a deixar a nossa assinatura), a leitura faz parte da nossa vida. E podem vir os computadores que vierem, as inovações de que ainda se vão lembrar para encher a nossa vida: da necessidade de ler e de compreender o que se lê ninguém se livra. Se puxei a importância da leitura para aspetos tão prosaicos quanto os das burocracias que, infelizmente, marcam a idade adulta, foi apenas porque, como disse, muitos imaginam que contornarão as dificuldades afastando simplesmente da sua existência o objeto de leitura por excelência: o livro. Podem fazê-lo, ainda que percam um mundo imenso que, cliché ou não, os empobrecerá muito. Contudo, as letras a exigirem ser compreendidas vão esconder-se e aparecer quando mais for preciso ter estaleca para se perceber o que nos querem dizer.

Como devem lembrar-se os mais antigos seguidores deste blogue, antes de decidir pôr um ponto final na minha carreira docente e enveredar por outros caminhos, fui professora de Português. Saí do ensino com a certeza de que o maior problema que as crianças e jovens portugueses enfrentam é o da dificuldade na compreensão e interpretação textual. E desengane-se quem, ingenuamente, acredita que isso só interfere na disciplina de Português. Esse é um problema transversal a toda a escolaridade. Quantos alunos não conseguem responder com correção a uma pergunta num teste de História, por exemplo, porque não compreenderam o que leram num documento ou, mais flagrante ainda, no enunciado da própria pergunta? Até em Matemática: quantos falham na tarefa proposta porque não perceberam o que era para fazer? Mesmo assim, mesmo sendo do conhecimento geral a existência desta dificuldade, a compreensão textual só está verdadeiramente presente nas aulas de Português. Nas outras disciplinas não existe ou é residual.

Perguntamo-nos há muito tempo por que motivo estão os alunos sem conseguir desenvolver esta competência tão fundamental ao longo da escolaridade, mas também fora dela. Levantam-se muitas hipóteses, e também um dos professores citados no artigo do El País avançou a sua teoria:

«El profesor de Lengua y Literatura de Secundaria y Bachillerato Juan Santiago Mellado nos habla claro: “Los niños y los adolescentes tienen tan mala comprensión lectora porque cada vez nos resulta más innecesaria en nuestra vida cotidiana. En realidad nos basta con dejar en visto libros, artículos, mensajes de texto o hilos de Twitter, para pasar a otra cosa. Pararse a comprender un texto es un ejercicio de estilo muy siglo XX, como escuchar un disco completo o ir al cine. Experiencias ya para académicos o snobs. Hoy en día nos han convertido en unos yonquis del impacto. No es raro que vaya consolidándose una neolengua plagada de oxímoron: hechos alternativos, posverdad, fake news, feminismo liberal, crecimiento negativo, inmigración ilegal”.» Ou seja: a leitura, a compreensão da leitura são tidas como peças empoeiradas num museu que não interessa visitar. Porém, outro professor citado no artigo diz-nos que «“El tiempo libre de los más jóvenes es muy limitado entre las clases de chino, los entrenamientos, ir a pintura o piano, pero entre todas esas actividades la lectura debe estar presente. La lectura debe estar presente en nuestras casas como un hábito recurrente, al igual que comer frutas y verdura, estar en contacto con la naturaleza o visitar a la familia y amigos”, concluye el profesor José Luis Merino.». Também isto é verdade: as crianças e jovens têm centenas de atividade que os chamam. Atividades atrativas, que implicam movimento e grande dispêndio de energia. Onde ficam os livros e a leitura numa competição com todas as solicitações que são feitas a estes miúdos ao longo do dia? E mesmo que até sejam jovens motivados e com gosto pela leitura, que tempo lhe poderão dedicar se todo o seu horário está preenchido (muitas vezes até mais do que o nosso, adultos que trabalhamos)?


A realidade que tomou conta dos nossos dias no último ano pode até ter dado mais tempo às crianças para a leitura e para o desenvolvimento da compreensão da leitura. Porém, os dois anos letivos atribulados que lhes calhou viver também as prejudicaram no desenvolvimento dessas atividades a nível escolar. Ao mesmo tempo, as crianças que estiveram com aulas em casa enquanto os pais «teletrabalhavam» estiveram a navegar à vista, muitas delas por conta própria porque os pais ou não podiam ou não conseguiam ajudá-las. E assim, quando os horários se esvaziaram de atividades extracurriculares e a leitura podia ter ocupado algum tempo, o meio envolvente não o permitiu verdadeiramente. Sobretudo não o permitiu a todos. Como disse o professor José Luis Merino, a leitura devia ser um hábito recorrente nos nossos lares, tão importante como outros que vemos como imprescindíveis. Não somos tão inocentes que não saibamos que muitos, mesmo muitos adultos não leem, não compram livros e, como tal, não podem ou não conseguem depois pôr os filhos a ler. Muita da aprendizagem que fazemos ocorre por exemplo. No caso da leitura (e sobretudo quando tantos ecrãs lutam pela nossa atenção), esses modelos são fundamentais. Quando não existem, o trabalho necessário para a criação de leitores e, principalmente, de leitores capazes de compreender o que leem, aumenta bastante.


Deixei o ensino, mas não deixei de ser professora e este tema preocupa-me. É muito difícil fazer nascer um leitor e sobretudo é muito difícil fazer nascer um bom leitor. Exige tempo que muitas vezes os programas escolares não permitem que exista; exige trabalho continuado e empenho dos docentes, dos alunos e dos pais. Encontrar uma sintonia entre estas três partes é mais difícil do que possa parecer. Motivar para a leitura é fundamental, não é um luxo. Infelizmente, muitas vezes a leitura transforma-se apenas em mais um trabalho escolar, o que lhe tira toda a graça e mata qualquer vontade que possa existir. Sem leitura não se desenvolve a compreensão do conteúdo lido, não se formam leitores funcionais. O problema é grave, é enorme e aumenta a cada dia que passa. Não é um problema exclusivamente espanhol: é de todos, e urge resolvê-lo. Não o fazer terá consequências gravíssimas para todos.

Sem comentários:

Enviar um comentário