Soube ontem que faleceu um dos melhores escritores que este mundo já viu. Gabriel García Márquez, ou Gabo, como carinhosamente o chamavam, criou mundos absolutamente admiráveis através das suas palavras, histórias inspiradas pela sua terra natal, por gentes e lugares bem longe daqui.
Li o magnífico Cem Anos de Solidão e, ao concluir a última página, tive uma sensação semelhante àquela que tive quando terminei o Dom Quixote: "Caramba, está aqui tudo!". E estava verdadeiramente. Nessa obra-prima das letra são muitas as personagens e poucos os nomes, já que existem nomes repetidos (a maioria das edições segue com uma árvore genealógica para dar uma ajuda ao leitor), mas cada uma dessas invenções de Gabo é única. A matriarca Úrsula parece viver mais de cem anos e gere aquela casa louca com admirável firmeza. Remédios a Bela nem sequer morre como as outras pessoas, de tão etérea que é. O Coronel Aureliano Buendía é um homem de guerra, bruto e corajoso, mas depois tem umas mãos suficientemente delicadas para dedicar-se a fazer peixinhos de prata. O patriarca e fundador da aldeia parte em busca do mar e não o encontra: tropeça, um dia, nele quando já não esperava encontrá-lo. E no fim tudo desaparece como se nunca tivesse existido a família Buendía. Pela mão de Gabriel García Márquez nascia, assim, o realismo mágico que nos vai encantando nos seus livros e nos de outros que lhe seguiram os passos.
Com a obra de Gabo fiz o mesmo que com a de Saramago: prefiro lê-la vagarosamente, porque prefiro saber que ainda vou poder apreciar pela primeira vez este ou aquele livro do que dizer que já li tudo, já conheço tudo, nada de novo virá. Ainda que sejam ambos escritores em que cada leitura é uma nova leitura muito mais do que uma releitura, este "modo poupança" é a prova de que lê-los é um prazer infindo e de que lê-los pela primeira vez é ainda melhor.
Gabo já não estava de boa saúde há muitos anos. Não direi que foi melhor assim porque nunca é. A única coisa que sei é que as letras perderam um dos seus melhores artífices, mas que quando isso acontece, ficam sempre os seus livros, as suas histórias e as personagens arrebatadoras que tão brilhantes cérebros puderam criar. Vem hoje num jornal que é de Gabriel García Márquez o segundo livro mais popular de língua espanhola (o primeiro é o Quixote). Uma coisa assim não se esquece e, deste modo, os nossos próximos cem, duzentos, trezentos, mil anos serão não de solidão, mas de boa companhia, pois connosco estarão as palavras de Gabo, tal como as de Cervantes nos acompanham há mais de quatrocentos anos. É isto que ainda conforta: o que é realmente bom não tem prazo de validade.