quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Rituais do início do século

Hoje vinha pelo caminho a recordar um ritual que existia nas escolas básicas do 3.º ciclo e nas secundárias há alguns anos e que, pelo que vou vendo, continua a manter-se, embora em moldes diferentes (o facebook mudou muita coisa...). Refiro-me ao acto do «cumprimento diário» (inventei agora o nome). Ora, o que era isto, perguntam vocês? Uma coisa estranhíssima e digna de uma hora de documentário da National Geographic.
 
Qualquer miúdo ou miúda que frequente o ensino do sétimo ao décimo segundo ano está condenado ao facto de ter de cruzar-se diariamente com as mesmas caras, sejam elas de colegas de turma ou de outros. Um ano lectivo dura sensivelmente nove meses e as aulas espalham-se pelos cinco dias úteis das infindáveis semanas (agora ainda me parecem mais intermináveis do que então, mas enfim...). Qualquer ser humano normal e com mais de vinte anos considerará agora que era para lá de estúpido cumprimentar solenemente com dois beijos na cara as figurinhas que víamos dia após dia no mesmo espaço escolar que frequentávamos. Porém, o acto do «cumprimento diário» às criaturas do sexo oposto era sagrado e ai do atrasado mental que o quebrasse!
 
Veja-se: uma gaja via um gajo «bom». Ria-se estridentemente e dava nas vistas, qual pavão, até ser vista pelo moço. Ora, como bem se sabe pelas aulas de Ciências (das quais só ouvíamos a unidade referente à reprodução humana), os rapazes «amadurecem» mais tarde que as raparigas, portanto das duas uma: ou elas deitavam logo o olho aos meninos mais velhos, só naquela de evitar andar com um parvinho sem maneiras ou, por outro lado, não eram muito selectivas e saía-lhes um totó ainda mais totó do que elas. Pois bem, deitado o olho (delas a eles e deles a elas, que a fauna funcionava em uníssono), seguia-se a fase do «posso conhecer-te?». Assim mesmo: o tipo ou a menina dirigiam-se ao alvo e esmurravam-no com esta pergunta.
 
Momento de tensão.
 
Se a coisa corria bem e se nenhum dos dois fosse um camafeu, conheciam-se. «Olá, eu sou a Gertrudes.», «Olá Gertrudes, eu sou o Crisóstemo.». Estava travado o conhecimento: daí para a frente só podia melhorar.
 
E como melhorava! Entrava em campo o ritual do «cumprimento diário» em todo o seu esplendor. Dia após dia, quando a Gertrudes e o Crisóstomo se cruzassem um com o outro à saída do bar da escola, já de croissant gorduroso na mão, ou mesmo no caminho para o WC, lá vinha o beijinho na cara. Porém, se julgam que o ritual se resumia a isto, estão extremamente enganados. Havia todo um subentendido por trás do acto de oscular a cara do menino ou da menina. Havia a análise do beijo. Sim, senhores: a análise dos beijo. E sobre isto, apenas posso revelar o lado feminino da coisa porque infelizmente nunca consegui infiltrar-me no meio masculino ao ponto de saber se o mesmo se passava do outro lado da barricada.
 
Ora, a menina cruzava-se com o menino antes das oito e um quarto, hora de início das aulas (e hora muito desapropriada para beijocar rapagões), e vinham de lá as duas beijocas. O que se seguia era isto: a menina ia para as aulas e revivia o momento enquanto conjugava o verbo sortir na aula de Francês. «Ele deu-me dois beijos mesmo na bochecha, não se limitou a encostar a cara!». A que se seguia outro pensamento inevitável: «Oh porra, já nos cumprimentámos hoje. Agora só amanhã...». Que eu saiba esta regra nunca foi quebrada e nunca nenhuma menina fingiu ter alzheimer só para poder esbeijaçar o moço pela segunda vez num dia. Inevitavelmente, também, dava-se início à troca de bilhetes com a melhor amiga da turma, nos quais cada uma fazia o relatório do cumprimento do dia com o respectivo desejado, esmiuçando cada milímetro de beiço encostado à bochecha, o olhar dengoso ou não com que o rapaz mirou as meninas, o epíteto que lhes dirigiu («linda», como em «olá, linda» era sempre um êxito capaz de derreter mais do que o sol em pedra de gelo!).
 
No dia seguinte a cena repetia-se e o mesmo ia acontecendo até que se fartassem um do outro ou que, finalmente, se decidissem a transferir o beijo da bochecha para os beiços, atitude desejada desde o primeiro dia, mas nem sempre fácil de pôr em prática.
 
E pronto. Ali pelo fim do século passado e início deste era assim que a coisa sucedia. Hoje lembrei-me disto e das tantas vezes que vi isto acontecer. À boa maneira de Flaubert importa ser honesta e admitir a verdade toda: a menina Gertrudes desta história... c'est moi.

2 comentários:

  1. Esta história é muito boa. Mas na minha escola não havia esse hábito "maravilhoso" de beijocar duas vezes a face de alguém todo o santo dia de manhã. Vá, só entrei para o sétimo ano em 1999, será que já perdi essa fase? :D

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    1. Na zona de Lisboa era uma realidade. Agora acho hilariante, mas na altura a coisa era o acto solene do dia. Cumprimentávamos os feios, os menos feios e os jeitosos. Porém, o momento alto era o de cumprimentar (era assim mesmo que dizíamos) o menino dos nossos olhos. Aí era a loucura! Analisávamos o momento ao pormenor. Constato que éramos loucas e que eu me enquadrava muitíssimo bem nesse grupo. :)

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