segunda-feira, 22 de julho de 2019

Livrinhos para as férias - a infância

Para muitos as férias já começaram, mas para outros (como eu), os dias de dolce fare niente ainda vêm longe. Claro que vamos fazendo planos, imaginando que faremos isto ou aquilo, que visitaremos aquele lugar de que nos falaram, que nos banharemos na praia X ou Y, que vamos jantar ao restaurante onde queremos ir há tanto tempo ou que vamos ler isto e aquilo. Aliás, o Verão é mesmo a estação do ano em que as pessoas (pelo que dizem...) procuram pôr as leituras em dia. É aquela velha história de que no resto do ano não dá para ler e de que só as férias de Verão trarão esse luxo que é... ter tempo para ler um livro.

Mas escolher o que ler não é fácil e, portanto, nesta altura do ano acumulam-se as sugestões, geralmente de livros recentes. Parece que se parte do princípio de que todos os outros já estão lidos. Ora, como o blogue As Minhas Quixotadas é uma «maria-vai-com-as-outras», resolvi também fazer algumas sugestões, embora com uma diferença: os livros sugeridos não são necessariamente recentes. Podem até ser bem antigos, que isso não me importa nada. Além disso, vou dividir as sugestões por temas. Hoje vamos à infância.

Há poucos temas que me deliciem mais na literatura do que o da infância. O romance de formação, ou bildungsroman, é aquele que se foca na educação, crescimento e processo de auto-conhecimento de uma personagem. Centra-se, sobretudo, na infância precisamente porque essa será a fase da vida em que formamos muito do que seremos no futuro. Ora, com tal importância, a literatura não poderia deixar de querer retratar esse período pelo qual todos passamos. Daí que muitas sejam as obras que se dedicam totalmente a esses anos ou que, pelo menos, decorrem em grande parte nessa fase da vida. O mundo e as experiências que ele nos proporciona serão responsáveis pelo carácter que desenvolveremos e é do eterno conflito entre o «eu» e o meio em que se move que nascerá um novo adulto. Mas antes passará, como todos passamos, pelos anos de aprendizagem e, se o destino for simpático, de brincadeira e ilusão. 

Além do bildungsroman, muitos outros livros retratam esta fase da vida. Alguns foram escritos a pensar precisamente num público leitor ainda muito jovem. Aí costumam destacar-se as aventuras, aquelas asneiradas em que todos nos metemos uma vez ou outra, ou ainda outras totalmente inventadas e impossíveis, mas que deleitam o leitor. Enfim, a infância permite tudo: desde o seu retrato aproximado até à viagem pela imaginação que tão bem combina com esses anos em que tudo é possível. 

Por isso, por ser tão delicioso ler sobre este período e observar o modo como ao longo dos tempos a infância seduziu escritores e os levou a procurar retratá-la, as minhas primeiras sugestões serão livros que, no todo ou em parte, evocarão os primeiros anos de uma personagem. São livros que eu li e que me ficaram na memória pelo modo mais ou menos alegre como o tema foi tratado. São infâncias de personagens mais ou menos sortudas, mas que em todo o caso cresceram e aprenderam. São livros que, na minha opinião, são boas leituras para a época preguiçosa do Verão.



Quem nunca se perguntou se determinada memória de infância não passa, de facto, de imaginação? Isso acontece com o narrador de O Mundo. Aqui encontramos a Espanha do pós-guerra, mas também uma infância diferente da que hoje vivem as nossas crianças. Brinca-se, imagina-se, contudo também se conhece a dor e a perda. Não é, por isso, uma efabulação que só se fica pelo que é bonito. Nada disso: é a infância como ela pode ser. 



Sim, todos nós conhecemos o Tom Sawyer. Sim, todos vimos a série e ainda cantarolamos que ele anda sempre descalço. Mas quantos lemos este livro e as aventuras deste malandro de fio a pavio? Poucos. Pois o fenómeno é este: eu vi a série, li o livro muitos anos depois e fiquei espantada pelo facto de o livro ser melhor, muito melhor, que a série que devorei em criança. As aventuras que Tom e os seus amigos vivem são tão possíveis e divertidas que esta é uma leitura compulsiva. Mas às vezes as coisas complicam-se e é aí que a infância é posta à prova. É um clássico e isso diz tudo.



Aos 32 anos regressei a estes livros e voltei a assistir ao crescimento do jovem Adrian Mole. Vá, já está mais para adolescente do que para criança, mas isso não importa. Nestes livros assistimos às vicissitudes da vida de um teenager com borbulhas, apaixonado, nascido numa família altamente disfuncional, que quer ser escritor e que é de uma ingenuidade desarmante. Mesmo tendo a sua acção nos anos 80 do século passado, é impossível não soltar uma sonora gargalhada com o pobre Adrian e todos os que fazem parte da sua desgraçada existência.



Quando penso neste livro, recordo sobretudo a beleza da escrita. É tão maravilhoso e ao mesmo tempo tão triste. A protagonista, Adriana, cresce diante dos nossos olhos e vai, aos poucos, ingressando num mundo de crescidos. Mas a sua imaginação, as brincadeiras que inventa e a amizade que vai conhecer nunca nos deixarão esquecer que é no reino da infância que nos movemos. Todavia, este livro não se fica pelo idílio dos primeiros anos. Vai muito além disso, sempre com grande beleza. Este é um dos melhores livros que li sobre a infância e, sendo sincera, um dos mais fabulosos romances que tive a oportunidade de ler.



Agora alguém estará a reclamar que este é um calhamaço e que ninguém vai ler tal coisa numas férias. Bom, meus caros, eu li isto em meia-dúzia de dias. Um bom livro é um bom livro seja em que estação for e, que eu saiba, o cérebro não tira férias no Verão.

Ora bem, David Copperfield... É verdade que o protagonista cresce, que a infância passa e que os problemas dos adultos chegarão à sua vida. Mas também é verdade que os problemas dos adultos chegam à vida do pobre David quando ele é ainda muito pequeno. Talvez nunca tenham estado longe dele, na verdade. É um romance de Dickens, é óbvio que este miúdo vai comer o pão que o Diabo amassou. Contudo, também vai saber dar a volta às situações e seguir em frente. Construirá a sua vida sem que alguma vez se esqueça do que viveu em criança. É um livro extraordinário, uma obra-prima, uma verdadeira maravilha.



Li este livro no final do ano passado e falei dele aqui no blogue. O protagonista é um rapaz que perder a mãe num atentado terrorista e que guarda «dela» um objecto. Será, no fundo, um novo cordão umbilical que o ligará à mãe, mas que, a determinada altura, mais parece uma brasa quente que lhe queima a pele. Porém, é tarde de mais. Esse objecto acompanhá-lo-á enquanto anda para cá e para lá, como um boneco, à mercê das decisões de adultos que pouco querem saber da sua vontade real. O tal objecto torna-se um fardo para o próprio fardo que é esta criança para os outros. E quando no fim esperamos que a felicidade aconteça, recordamos que a arte imita a vida... com tudo o que ela é. Leitura longa, mas maravilhosa do início ao fim.



Também os nossos autores falaram sobre a infância. Por cá, o livro que mais rapidamente recordo é este Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira. O protagonista mudar-se-á da sua pequena aldeia para o seminário quando conta apenas doze anos. Por lá conhecerá o mundo, mesmo estando dentro de quatro paredes de pedra. A par da sua educação formal, o leitor assiste às vivências próprias da infância bem como à consciencialização de que o mundo é muito mais complexo do que aquilo que os tenros anos nos podem levar a crer. Este protagonista perceberá que existe pobreza, que existe dor, desigualdades várias, mas também amor, amizade e um sem-fim de experiências para viver.


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