domingo, 5 de março de 2017

A biblioteca que somos

No último livro de Alberto Manguel lemos sobre bibliotecas. A Biblioteca à Noite, publicado pela Tinta da China, evoca as públicas e as particulares, mas não fica por aí. Alberto Manguel diz ao leitor que além sermos a nossa própria biblioteca, já que os livros que temos dizem muito sobre nós, somos também as bibliotecas que não temos. Ou seja, segundo o autor, os livros que não temos também dizem muito sobre nós. Não só os que não temos porque não queremos ter, mas também os outros: aqueles que gostaríamos de possuir e que, por algum motivo, ainda não estão na nossa biblioteca e aqueles que queremos, mas que ainda nem foram escritos.

Os livros falam de nós: esta é uma ideia bonita, mas ao mesmo tempo inquietante. Depois de ler este livro de Manguel, entre o final do ano passado e o início deste, fiquei a pensar que se é bonito ter à minha volta livros que me apresentam ao mundo, é também estranho que neles esteja tanto sobre mim. Inclusivamente aquele tanto que posso não querer partilhar com os outros e guardar só para mim. E depois, além de os meus livros revelarem muito do que sou, ainda há a outra parte que ajuda a completar o meu retrato: a dos livros que cá não estão. Sem dúvida, Manguel tem razão: os livros dizem mesmo muito sobre nós. Mas feliz ou infelizmente, esqueceu-se de um pormenor: a maior parte das pessoas não liga nada aos livros e não percebe que para conhecer bem uma pessoa, ver a sua biblioteca e pensar sobre os seus haveres e faltas é fundamental. Está diante da vista, porém não se vê. O Principezinho explica, pois no seu entender «O essencial é invisível aos olhos.».

Foi a pensar nisto que Alberto Manguel diz sobre o facto de sermos a nossa biblioteca, mas também a biblioteca que não temos (inclusivamente porque podemos desejar livros que ainda nem foram escritos, como já disse), que resolvi pensar na biblioteca que não possuo. A que tenho conheço bem e, se vista com atenção, diz mais sobre mim do que aquilo que gostaria. Está cheia de clássicos, tem poucos livros contemporâneos. Vive e aumenta-se muito com livros que sobreviveram ao escrutínio do tempo. Vai crescendo também com a História do que fomos e a análise do que somos. Mas tem falhas. Falhas que tento tapar por vezes, quando tropeço nos livros que não estão e que deveriam estar. Ainda assim, um bom leitor sabe reconhecer três ou quatro (ou dezenas ou centenas) de livros que não estão e deveriam estar junto de si. Isto até poderia dar uma daquelas quixotadas com o título «A Menina quer Isto», mas não vai dar. Porquê? Porque embora sejam livros que gostaria de ter, são livros que não estão na minha biblioteca pessoal porque outros sempre se colocaram em bicos de pés na frente deles. Estes são, considero, básicos que têm, infelizmente, ficado esquecidos. Provavelmente, mesmo que me saísse agora o Euromilhões, não seria estes aqueles que correria a comprar porque, lá está, arranjaria sempre outros muitos para trazer primeiro. Estes acabam por ser valores certos que estão lá, que nunca desaparecerão, mas que enquanto aqui não estiverem serão ausências ruidosas, falando muito sobre o que sou. Assim, esta é uma parte da biblioteca que não tenho, não porque não a queira, e que ao mesmo tempo sou:






Nota: Todas as capas foram retiradas do catálogo da Wook.

4 comentários:

  1. Nunca tinha pensado nessa perspectiva dos livros que não temos em vez dos que temos. Agora vou ficar a pensar nisso...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É uma ideia curiosa, é. Por isso é que isto dos livros é fascinante. Há sempre mais qualquer coisa para deixar-nos a pensar.

      Eliminar
  2. Esse de Manguel que referes ainda não está na minha biblioteca. Ainda. Lá está, há livros que passam à frente de outros. As bibliotecas estão em permanente construção.

    Uma colega veio a minha casa, e na primeira vez disse-me muito espantada: "Não tens uma biblioteca. Isto é uma morgue!"
    Precisamente por ter muitos mais clássicos que contemporâneos. São gostos.
    O livro de Sena nunca li, nem tenho, o de Dickens está na estante a aguardar vez. Dos outros gostei muito.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Essa ideia da «morgue» é curiosa. Até porque agora se escreve tanto e se publica tanto que para algumas pessoas fará mais sentido ter nas prateleiras os livros «de agora» e menos os de sempre (repara que não disse «de ontem»).

      Este livro do Manguel é interessante. Além de contar algumas histórias relacionadas com livros e bibliotecas, deixa-te a pensar sobre o modo como elas se configuram. Aliás, os modos. E também sobre o que conseguem dizer, estando em silêncio. É muito bom.

      Eliminar