Em Madrid terminei o último romance de Arturo Pérez-Reverte, Hombres Buenos. A acção passa-se em Espanha e em França no século XVIII, mesmo antes da Revolução Francesa. A Real Academia Espanhola encarrega dois dos seus membros de uma missão nada fácil para a época: dotar a sua sede de uma primeira edição da famosa Enciclopédia de D’Alembert, Voltaire e outros. Porém, os muitos volumes que compõem essa mítica obra, pelas suas ideias avançadas e afastadas daquilo que eram as crenças vigentes num país altamente católico, não eram permitidos em Espanha. Ainda assim, a Real Academia conseguiu o apoio do rei, Carlos III, e conseguiu uma permissão da Inquisição para que a obra fosse trazida de França. Inicia-se, então, uma viagem cheia de perigos, realizada por dois homens de letras que se vêem perante situações que exigem, mais do que a pena, a espada. Mesmo com todas as permissões do mundo, a Enciclopédia era uma obra tão revolucionária que não era bem-vinda por todos. E que importa que o rei a queira na Real Academia Espanhola se para alguns ela constitui uma afronta a Deus? Assim nascerá uma oposição à viagem que causará transtornos aos dois académicos.
Um dos aspectos mais interessantes deste romance tem que ver com a narrativa que corre de forma paralela relativamente à acção principal: a dos dois académicos que viajam para Franca para conseguir uma primeira edição da Enciclopédia. Nessa narrativa, o narrador explica como procedeu ao longo da construção da obra. Que viagens fez, que livros consultou, com quem falou... Claro que não podemos afirmar que Reverte tenha de facto feito tudo aquilo até porque em literatura narrador e autor são entidades diversas e nem sempre coincidem. Portanto, até prova em contrário, podemos não acreditar em nada do que o narrador nos diz sobre a “arte poética” deste romance. Mas também não ganhamos nada em fazê-lo porque o que é realmente interessante é a alternância entre a acção principal e esta acção secundária que nos mostra o trabalho que sempre está na base de um livro, sobretudo num romance histórico. Aquilo que fica claro é que nada daquilo se escrevia sem pesquisa e, para que os detalhes sejam honrados e não existam anacronismos que ponham todo o livro em causa, o próprio narrador descreve a sua pesquisa, as suas idas aos locais que ia descrever, tentando imaginar na paisagem do século XXI aquilo que seria no século XVIII. É, sem dúvida, interessante este esclarecimento dado por um narrador que se mostra autor (e que se mostra o próprio Reverte, ainda que isso não possa, como disse, afirmar em definitivo).
Agora, relativamente à acção principal... O tema é interessante, sem dúvida. Desde as descrições das reuniões dos membros da Real Academia, passando pela vontade de remar contra a maré e de ter na sua biblioteca uma obra tão única e revolucionária como foi a Enciclopédia e mesmo os momentos em que somos transportados para o tempo da acção e para as descrições dos espaços são bastante interessantes. No entanto, a sensação que tive no final foi a de que tudo avançou muito lentamente. Percebi que houve um desejo por parte do autor em deixar bem claro ao leitor o que se estava a passar. É que se não nos fosse explicada a importância da obra francesa realizada por alguns dos mais conhecidos filósofos e escritores do Iluminismo nem o que significaria a presença da Enciclopédia na Real Academia Espanhola provavelmente boa parte do romance passar-nos-ia ao lado. Ora, para proceder a essa explicação e à das ideias que vigoravam em algumas cabeças (e que conduziriam à Revolução que se deu poucos anos depois) foi necessário introduzir na história personagens com quem os académicos espanhóis pudessem conversar. O que me parece foi que se conversou demasiado e, no fim de contas, não aconteceu assim tanto. Além disso, o final tem um momento em que há um salto no tempo e acontece uma elipse que nos deixa sem saber o que se passou num momento decisivo da acção. Sabemos como acabou, mas não sabemos o que aconteceu até acabar.
Mais: a personagem de um dos académicos parece um pouco inverosímil. A sua descrição é a de um homem já com uma certa idade, retirado de uma vida militar e pouco dado a amores. No entanto depois parece uma espécie de Don Juan misturado com Super Homem. Causa alguma estranheza esta diferença entre a personagem que primeiramente conhecemos e aquela com que topamos uns capítulos à frente.
Por isso, apesar de ser um romance histórico que pretende contar uma história interessante que se relaciona com a mudança de mentalidades em países tão diferentes quanto Espanha e França, creio que ficaram alguns aspectos por melhorar. Já li outros livros do mesmo autor em que tudo está mais bem equilibrado, em que não há nada que destoe. Aqui a ideia era boa, deu uma trabalheira para concretizar, mas parece que falta verosimilhança e acção.